A Casa dos Anjos - Continuação: A História de Marina Pessoa
Antonio Rondinell - 2010 / 2011
CAPÍTULO 01
Saí
do elevador de meu prédio pronta para encontrar minha irmã, que me aguardava no
saguão. Parecia ter sido um problema com Felipe, meu sobrinho. Vanessa passara
ansiedade ao telefone, combinando de me pegar para irmos juntas ao hospital.
Não faziam mais que vinte minutos do fim da ligação, tempo suficiente para que
me trocasse e descesse, enquanto ela me esperava.
Deparei-me com algumas crianças brincando
perto do elevador, eram quatro meninas, bem vestidas, animando algumas bonecas.
Elam riam e davam voz à imaginação, falando do quanto eram “infelizes”.
Estranha brincadeira! As meninas pareciam felizes, mas dialogavam como adultas,
tratando de coisa séria. Talvez uma projeção do que ouviam em casa.
“Eu
sou muito infeliz!”
Aquela
fala ecoou em meus ouvidos, seguida de muitas gargalhadas das “amiguinhas”.
Procurei por Vanessa, minha irmã, mas não estava mais ali. Nem o porteiro.
Ninguém, a não ser as meninas.
-
Com licença. – Precisava interromper a brincadeira para saber de minha irmã. –
Vocês viram um mulher loira, de olhos azuis, bonita por aqui?
Olharam-me
e continuaram rindo.
-
Não vimos ninguém. – Uma delas respondeu. E riram novamente.
-
Por que não procura no inferno, senhora? – Foi outra menina que falou, sorridente.
Inferno?!
Palavra forte para ser pronunciada por uma criança, e de forma tão natural,
sorrindo. Tomei aquilo como um sinal.
-
Desculpem, não quis atrapalhar. – Arrematei, afastando-me dali.
As
meninas continuaram a brincadeira. Foi então que ouvi o nome de uma das
bonecas. – Marina – O meu nome. A dona desta boneca então levantou-se e correu.
As coleguinhas não hesitaram em segui-la. Horrível sensação ao ouvir como a
chamavam:
“Assassina!”
O
que estava acontecendo ali afinal? Senti-me angustiada, com dificuldade para
respirar e entender aquela situação. Nunca havia visto aquelas meninas em meu
prédio. Deviam ter entre seis ou sete anos de idade e trajavam roupas
diferentes da nossa época, com longos vestidos de renda e laços. De repente,
não era mais dia, havia caído a noite sem que eu percebesse e as luzes do
saguão de meu prédio estavam quebradas. Um caminho de velas se fazia à minha
frente, levando-me a um corredor, o qual eu não sabia existir ali. Velhas
cortinas eram jogadas umas contra as outras pelos ventos da Beira Mar, onde
ficava meu prédio. O estreito corredor se deixava iluminar apenas pela
claridade da noite que entrava através das inúmeras janelas estruturantes de
sua extensão. Restava-me apenas seguir adiante. Vi então um vulto, correndo do
outro lado das janelas. Pelo tamanho, parecia de uma criança. Talvez uma das
meninas que há pouco brincava no saguão. Quando o vulto passava de uma janela a
outra, ria e dia coisas que eu não conseguia definir o que eram.
-
Oi. Quem é você? – Procurava saber, seguindo em direção ao final do corredor,
para onde o vulto se direcionava. – Onde estão seus pais?
E
outro vulto.
-
Assassina!
Meu
Deus!
-
Que brincadeira é essa? – Tentei saber, assustada.
-
Assassina! – Falou novamente o vulto, correndo de uma janela a outra. Mas não
era mais nenhuma das meninas. Parecia um menino, trajando uma bata branca, como
essas que se usa em hospitais.
-
Quem é você? Por favor, venha até aqui? – Tentava descobrir, olhando de janela
em janela, na esperança de vê-lo melhor. – Quem é você, garoto?
-
Assassina! – Parecia mais longe, pelo eco que trazia o som.
-
Que brincadeira é essa? Alguém, por favor, pode parar com isso? – Continuava
buscando em cada janela o dono daquela voz nociva. Era uma criança, mas a
pronuncia vinha carregada de mágoa e rancor. Um peso que doía em minha alma.
Mais
janelas foram aparecendo, escondidas pelas velhas cortinas rasgadas que
cheiravam a mofo. Uma e mais outra, outra, outra, até me deparar com a figura
do menino bem diante de mim. Cabelos escuros, olhos esbugalhados, assustado.
Ele, muito sujo e cheirando mal. E nas mãos, muito sangue!
-
Ahhhhhhhhhhhhhhhh!
Acordei
com meu grito.
Há
muitos anos eu não tinha aquele tipo de pesadelo. Creio que desde quando
resolvi sair de casa e deixar meu marido. Antes, passara muito tempo sendo
atormentada por aquele menino em meus sonhos. E então, ele estava de volta.
No
início, os pesadelos retratavam situações em que eu precisava me libertar por
alguma porta inatingível, e traziam geralmente a imagem daquela criança de bata
branca, sujo de sangue, agredindo-me. Foram anos de sofrimento, até o final de
meu casamento com Donato Pessoa.
Vanessa
e eu perdemos nossos pais muito cedo. E ela, como irmã mais velha assumira a
responsabilidade de minha educação. Em minha adolescência, fomos morar na
Inglaterra, depois de seu casamento com Pedro. Durante anos parecíamos uma
família feliz. Dedicava-me aos estudos, a cuidar de Felipe, meu sobrinho, e ao
início de minha carreira como modelo, que era na verdade o grande sonho de
minha irmã. Foi então que conheci Donato, pouco depois de completar dezoito
anos.
Donato
Pessoa era o melhor amigo de meu cunhado. Havia-o conhecido quando era ainda
menina. Todavia, naquele momento, eu já era uma mulher, e ele, pela primeira,
vez me via como tal. Com o dobro de minha idade, soubera me conquistar.
Finalmente conhecia meu príncipe encantado, o homem com quem sonhei a vida
inteira me tirar daquela brincadeira de boneca, com a qual parecia minha
relação com Vanessa. Era uma jovem infeliz, e Donato me fizera experimentar a
felicidade em seus braços.
Moreno
alto, de furinho no queixo e voz rouca, Donato dizia-me tudo o que uma mulher
sempre sonhara em ouvir. Encontrávamo-nos completamente apaixonados um pelo
outro. A mim, não importava já ter sido casado, como minha irmã tanto
argumentava, tentando usar aquilo contra ele, ou ter sido um homem pobre, que
fizera fortuna depois do casamento com a filha de um grande empresário. Para
mim, Donato não era o aproveitador, o crápula descrito pelas pessoas ou por
Vanessa, nem muito menos, teria ele se aproximado de meu cunhado Pedro, anos
antes, de modo premeditado, apenas para subir na vida, assim como eu havia
ficado sabendo. Ou muito menos, que ele estava comigo apenas para tentar acabar
com o casamento de Pedro e minha irmã, por ela odiá-lo, e tê-los, de certa
forma, afastado com a viagem para a Inglaterra. Donato Pessoa era maior que
tudo aquilo, era o grande amor de minha vida. E por ele, deixei tudo para trás
em Londres, começando vida nova.
Aos
poucos fui conhecendo um novo Donato, um homem trancado num mundo só seu,
distante do romantismo vivido quando nos encontramos, obstinado a subir e ser
reconhecido na empresa em que trabalhava, a conseguir mais dinheiro, a
conquistar o mundo como político, primeiro elegendo-se deputado federal, depois
senador da república. Nosso casamento foi sendo transformado numa fantasia
unilateral, na qual eu me matinha ao lado de um príncipe encantado não
existente. As conversas foram ficando
cada vez mais escassas, e cumplicidade tão sonhada por mim, distanciava-se a
cada dia.
Apesar
da falta de tempo de Donato para vivermos o meu sonho de um casamento feliz,
ele conseguira me manter afastada de qualquer coisa que pudesse me tirar de sua
vista ou controle. Era como se eu fosse mais uma propriedade, uma conquista, um
prêmio só seu. Não me cabia amigos, trabalho, estudo, nada. Apenas ser a sua
esposa e o esperar chegar em casa para deitarmos. Uma relação que foi me
sufocando pelo silêncio estabelecido entre nós. Nada tínhamos em comum, nada!
Qualquer conversa findava em monossílabos, ou desculpas de falta de tempo.
A
maior parte do tempo de meu marido era partilhado com sua fiel secretária
Luísa. Com ela sim ele vivia toda a cumplicidade sonhada por mim. Aquela bela
mulher era a grande parceira nos negócios de meu marido, tanto na empresa
quanto na política. Uma relação construída desde os tempos de seu primeiro
casamento. Luísa fora também sua primeira secretária ainda nos tempos da
agência de publicidade do sogro, ajudando-o de certa forma a chegar aonde
chegara. Talvez tenha sido por tanta confiança profissional o motivo pelo qual
Donato sempre a manteve morando conosco, embora fosse uma relação que
despertava a desconfiança e comentários das pessoas, no próprio prédio, na
empresa, onde estivéssemos. Um fantasma com o qual eu ainda precisava conviver
além da distância de meu próprio marido.
Depois
de conhecer meu cunhado Pedro Lucena no primeiro ano da faculdade e se
transformar em seu melhor amigo, Donato foi convidado a trabalhar na agência de
publicidade WM, uma das maiores do nordeste, da qual o pai de Pedro era um dos
diretores. Era o princípio de sua ascensão profissional. Pouco tempo depois se
casou com Maria Eugênia, a filha mais velha do dono da agência. Uma união que
todos acreditavam ser por pura conveniência. Ela, para chamar a atenção do pai
e provocar ciúmes no ex-marido. Ele, para garantir a posição social e o
crescimento profissional tão sonhado em toda a sua vida. Ainda assim,
permaneceram casados por oito anos, numa relação que eles chamavam de “aberta”,
onde viviam suas aventuras amorosas com outros parceiros, sem que aquilo
interferisse em seus interesses. Quando nos encontramos na Inglaterra, Donato e
Maria Eugênia já haviam se separado há três anos, e conseguiam manter uma
relação amistosa dentro da empresa, com algumas exceções em que um excluía o
outro de seus negócios escusos, resultando em confrontos e ameaças de acabarem
com suas posições profissionais. Tratava-se de uma pseudo lealdade estabelecida
desde a época de seu casamento.
Há
quatorze anos, Donato assumira a diretoria comercial da RTN – Rede de Televisão
Nacional, empresa fundada por seu ex-sogro Leonardo Vieira Gondim em Fortaleza,
após a venda da WM. Sendo entregue a Alberto Lucena, o pai de Pedro, a
vice-presidência deste empreendimento. Era o início do fim de uma grande
amizade. Embora tenha sido o velho Alberto o responsável pelo ponta pé inicial
na carreira de Donato, chegando em muitas vezes a tratá-lo como um filho, ele
sonhava com aquele cargo desde o nascimento da empresa, e tudo o faria para
consegui-lo.
Foram
quase dez anos de perseguição de meu marido e sua ex-mulher a Alberto Lucena,
para conquistarem sua derrota e o virem longe da RTN. O que se concretizara com
sua morte, há quatro anos, depois de um ataque fulminante do coração. Donato só
não contava com o retorno definitivo de Pedro da Inglaterra, por conta da morte
da morte do pai. Existiam rumores de que o velho Alberto havia descoberto
transações ilegais envolvendo a rede de televisão, partidos políticos e o poder
público, dentre os quais se destacavam desfalques, desvio de verbas públicas,
tráfico de influências e lavagem de dinheiro. Tudo indicava que era do
ex-pupilo do vice-presidente da empresa o principal nome citado no dossiê
organizado por ele antes de sua morte. Documentos que ninguém sabia ao certo
onde estariam, ou se realmente existiam. O fato é que haviam forças maiores que
meu marido, exigindo que descobrisse o paradeiro do suposto dossiê, antes que
Pedro Lucena o encontrasse e tivesse conhecimento do esquema milionário.
Ouvi
diversas conversas de meu marido e sua secretária arquitetando estratégias para
descobrirem uma pista do dossiê de Alberto Lucena, o qual desconfiavam que
poderia já estar no poder de meu cunhado, sem que soubesse ou o reconhecesse.
Trama que transformara-os em inimigos, visto que Pedro sabia da provável
existência de tais documentos e suspeitava da morte do pai como queima de
arquivo. Decidira então permanecer no Brasil no intuito de investigar o
mistério e fazer justiça.
A
rivalidade de Donato Pessoa a Pedro Lucena fora declarada quando este assumira
interinamente o cargo do pai na RTN, a pedido de Leonardo Gondim, o dono da
empresa. Passara dez anos lutando para superar seu protetor e, finalmente,
quando pensava alcançar seu objetivo, fora surpreendido pela presença
competente de seu melhor amigo em seu caminho. Justo ele, quem lhe abrira as
portas de um universo de vitórias e sucesso, de poder e dinheiro, representava
então seu novo obstáculo, um inimigo que não mediria esforços para
destruir.
A
primeira empreitada de meu marido contra seu inimigo foi a contratação de uma
mulher parecida com o grande amor de meu cunhado, que havia morrido em um
acidente de carro, anos antes de seu casamento com minha irmã. Lembro bem de
Vanessa referindo-se a este relacionamento de Pedro como sendo o motivo de sua
infelicidade, por nunca tê-la esquecido. O plano de Donato era fazer com que o
novo vice-presidente da RTN, recém-separado, acreditasse que sua ex-namorada
não havia morrido, fragilizando-o emocionalmente e afastando-o do foco do
dossiê e da rede de televisão.
Um
investimento perigoso e bem arquitetado que tivera seu fracasso meses depois. A
tal mulher, contratada para se passar pelo grande amor de Pedro acabara por se
envolver emocionalmente com ele e desistira de sua participação na trama.
Contudo, a atenção de meu cunhado realmente fora desviada da busca dos
documentos de seu pai, por um bom tempo. Sendo reacendida somente três anos
depois, numa conversa com o caseiro de sua casa de praia, na qual descobrira
que ele guardava o dossiê no fundo de um baú, para tentar protegê-lo. Meu
marido logo fora avisado do acontecido pela filha do caseiro. A moça seria bem
recompensada pela informação. Fiquei atentar ao ouvir o telefonema.
-
Velho estúpido! Sempre esteve com o dossiê... – A fala de Donato era de
indignação. Já havia procurado pelo caseiro diversas vezes nos últimos quatro
anos, desde a morte de Alberto Lucena, na tentativa de descobrir qualquer pista
que fosse dos documentos. E o velho sempre negara saber qualquer informação a
respeito. Na verdade, tudo fizera para proteger o filho de seu chefe e grande
amigo. Meu marido jamais saberia o valor da lealdade. O fato era que finalmente
o dossiê de Alberto Lucena estava com seu filho, e o esquema milionário dentro
da RTN viria à tona na certa, se nada fizesse.
Donato
encontrava-se aparentemente nervoso, pegou novamente o celular e ligou.
-
Luísa? O dossiê realmente existe. Sim, e está com Pedro Lucena agora. Parece-me
que ele teve uma conversa séria com o caseiro, e o velho revelou que sempre
esteve de posse dos documentos, que o Alberto lhe entregou pouco antes de
morrer. Precisamos fazer alguma coisa já. Se tudo for descoberto, nós estamos
perdidos, você sabe disso. – Falava provavelmente dos acordos envolvendo
grandes nomes da política e outros empresários. Se a morte de Alberto Lucena
realmente havia sido queima de arquivo, poderiam eles estar correndo perigo.
Temi também pela vida de meu cunhado. – Providencie aqueles nossos amigos para
pegarem os documentos. Pelo que a idiota, a filha do caseiro me passou o Pedro
e o velho ainda estão lá conversando. Talvez ainda estejamos com tempo para
agir. Então, fico aguardando notícias. E, só mais uma coisa. Cuidado, não quero
que o machuquem. – Uma pausa, e completou: - A não ser que seja necessário. –
Desligando o aparelho.
Seria
covardia se eu nada fizesse para impedir que meu marido cometesse uma loucura,
pondo em risco a vida de meu cunhado. Minha postura omissa diante dos negócios
sujos de Donato, não poderia continuar ali. Não diante do perigo iminente de
machucarem Pedro Lucena. Criei então coragem e invadi o limite imposto por meu
marido desde o princípio de nossa relação.
-
Donato, você não pode pôr a vida de Pedro em perigo! – Tremia, mas procurei me
manter firme na investida. – Não tive como deixar ouvir a ligação.
-
Marina? – Servindo-se de um uísque no barzinho da sala, voltou-se a mim,
surpreso. – O que você está fazendo aqui?
-
E sei que acharam o dossiê.
-
Do que está falando, minha querida?
Ele
sabia que eu tinha conhecimento de tudo, mas preferia fingir o contrário, como
sempre o fizera. Era uma forma de me proteger ou se proteger e a seus negócios.
-
Donato, não temos tempo para fingimentos. Eu ouvi você pedindo que Luísa
chamasse alguém para pegar o dossiê de Pedro. E que se preciso for, poderia
machucá-lo.
-
Querida, você ouviu mal. Eu...
-
Você sabe que não. – Interrompi-o. – Donato, por favor, ligue de volta para
Luísa, diga-lhe que não faça nada a Pedro.
-
Marina, você não devia estar se metendo. Não sabe nada.
-
Sei mais do que imagina.
Ele
tomou toda a bebida colocada no copo há pouco de um só gole.
-
Nada acontecerá a Pedro, não se preocupe.
-
Eu ouvi o telefonema. Você sabe que ele jamais vai entregar esses papeis de mão
beijada. Nós dois conhecemos o Pedro, Donato. Ele está correndo risco.
-
Bobagem. Tudo será feito com cuidado. – Tentou amenizar a situação, tocando meu
rosto. – Logo encerraremos essa história.
-
Donato, eu sinto que alguma coisa pode acontecer a Pedro.
-
Luísa sabe como proceder nesses casos, não se preocupe.
-
Se algo de ruim acontecer a ele, eu sei que você não vai se perdoar.
Percebi
que Donato ponderou com aquela minha colocação.
-
Marina, eu confio na Luísa.
-
Eu não confio nesse pessoal. Você sabe do que estou falando, Donato. – Nossa
conversa parecia ser precedida de um subtexto. Referia-me aos negócios escusos
de meu marido em parceria com sua secretária, ao que eu fingia não enxergar,
obedecendo à orientação silenciosa imposta por ele em todos aqueles oito anos
de casamento. Fui abraçada por Donato, como forma de me confortar, ou a ele
próprio. No fundo, sentia falta dos anos de amizade com Pedro Lucena. E também
temia que algo de grave lhe acontecesse. E pela, primeira vez o vi apreensivo.
CAPÍTULO 02
Meu marido aguardou ansioso, por notícias da secretária acerca da
operação de apreensão do dossiê que estava com Pedro Lucena. Muitos segredos
estavam em jogo, diversos nomes envolvidos no esquema de corrupção na RTN.
Permaneceu por quase duas horas fitando o mar da janela do escritório de nosso
apartamento no vigésimo segundo andar, na Beira Mar. Tendo tomado pelo menos
umas cinco doses de uísque, para conter a angústia. Receava não apenas que meu
cunhado conhecesse o conteúdo do dossiê, mas que algo de mal lhe acontecesse.
Precipitei-me
ao escritório, logo que o celular de Donato tocou. Rezava para que nada de
grave tivesse acontecido a Pedro. Lembrei de Felipe, meu sobrinho, o quanto
amava o pai, de seu sofrimento com sua ausência imposta pelo divórcio de meu
cunhado e Vanessa. E esta, que ainda acreditava na possibilidade de
reconquistar o marido. Que Donato estivesse certo em confiar nos homens
contratados por Luísa para arrancarem o dossiê das mãos de seu inimigo!
-
Luísa? – Era realmente ela quem ligava. – E então? – Estava visivelmente
nervoso. – Conseguiram? – Uma pausa. – Como? – Sua fisionomia foi se desenhando
ainda mais apreensiva. – Não consigo ouvir direito!
-
O que aconteceu? – Antecipei-me.
-
Calma. – Ele procurou me conter para poder ouvir melhor o que Luísa lhe dizia
do outro lado da linha. – Como vocês foram deixar que isso acontecesse? –
Colocou a mão na cabeça.
-
O que houve, Donato?
Ele
não me dava atenção ainda.
-
Eu quero detalhes, sua imbecil! – O tom de meu marido era mais grave,
agressivo. – E ele?
-
Donato, pelo amor de Deus, o Pedro está bem? Lembrava de Felipe, de Vanessa, de
como o próprio Pedro estaria.
Ainda
sem desligar, balançou a cabeça de modo negativo, procurando ainda se ater às
informações da secretária. Sentei no sofá, paralisada. O pior teria acontecido!
-
Mas eles não o socorreram? - Meus Deus, eu estava certa em meus
pressentimentos! – E mesmo eles avisando você não os orientou a voltarem e
ajudarem? – Mais uma pausa. – Vocês são todos idiotas! Idiotas! – tirou o
telefone do ouvido, fitando o aparelho, como se daquela forma Luísa pudesse
sentir sua indignação. – Idiotas! – Estava aos gritos. E jogou o aparelho
contra a parede.
-
O que aconteceu, Donato?
Balançava
a cabeça de forma negativa, como se reprovasse a si mesmo.
-
O Pedro... – Tinha a voz embargada.
-
O que foi? O Pedro não está bem?
-
Não. Ele foi baleado. – Passava a mão pelo cabelo, franzia a testa, tocava a
sobrancelha. A Luísa acha que ele está morto. – Terminou aquela frase com um
forte murro sobre a mesa, a raiva aparente escondia a dor. – Droga, droga,
droga!
-
Pode ser que ela não tenha a informação correta. – Aproximei-me, torcendo que
eu estivesse correta. Não poderia ser! Parecia um de meus pesadelos. Não com
Pedro Lucena. Ele sempre fora um grande amigo desde que moramos na Inglaterra.
-
Foi um tiro no peito.
-
No peito?
-
No coração. – Completou, com voz trêmula.
Cobri
meu rosto, refugiando-me da dor. A rivalidade entre
Donato Pessoa e Pedro Lucena finalmente teria chegado ao fim. Os dois grandes
obstáculos responsáveis por meu marido não realizar seu sonho dentro da RTN
estavam mortos, pai e filho, os mesmos responsáveis por encontrar abertas as
portas do mundo que tanto sonhava.
-
Como foi isso, Donato?
-
Houve uma perseguição na estrada do Porto das Dunas a Fortaleza. Pedro estava
voltando pra cá. Parece que tomou um tiro na testa de raspão, ainda conseguiu
parar o carro e fugir. Acabou num confronto corpo a corpo com os homens.
-
Sozinho? – Minha pergunta, chegava a Donato como uma punhalada.
-
Sim, sozinho. Mas ele sempre foi muito corajoso. Eram três contra ele.
-
Meu Deus! – Eu já estava banhada em lágrimas. – E então...
-
Precisaram atirar... – Uma pausa para respirar. – ...senão era capaz de... –
outra pausa e, completou: - ...não conseguirem pegar a pasta com os documentos
que estava na camisa dele.
-
Eles o deixaram lá?
Respondeu
que sim com a cabeça. Se continuasse falando, não conseguiria mais conter o
choro. Já não reconhecia a prepotência, arrogância e frieza que fizeram parte
de Donato nos últimos anos. Vi ali, diante de mim, um homem transtornado pela
dor de perder o grande amigo, mesmo que estivesse afastados nos últimos anos.
-
Eu não queria, Marina! Eu juro que não queria que terminasse assim.
Aproximei-me
e o abracei. Aos poucos, Donato foi perdendo a rigidez e se deixando relaxar em
meus braço, ainda que contendo um choro eminente.
-
Calma!
-
Tudo poderia ter sido diferente se ele não fosse tão teimoso. Fazia tanto tempo
que essa história estava enterrada. Nem eu mesmo lembrava mais da droga desse
dossiê. Faziam três anos que não ouvíamos falar disso.
-
Você sabia que um dia isso viria à tona.
-
Por quê? Por que ele não deixou essa história quieta, como estava?
-
Pedro jamais esqueceria isso.
-
Tudo por culpa daquele velho estúpido! – Referia-se ao caseiro de Pedro.
-
Donato, foi você que mandou os homens atrás dele.
-
Se ele não tivesse entregado a pasta ao Pedro, nada disso teria acontecido.
-
É mais fácil culpar alguém nesse momento?
-
Eu não queria que ele morresse, eu juro! Não queria! Eu juro!
-
Pode ser que não tenha acontecido o pior, que ele esteja apenas ferido.
-
Parece que não.
-
Como eles podem ter certeza?
-
Verificaram os sinais vitais.
-
Meu Deus! – Nem consigo descrever a dor sentida com aquela confirmação.
-
Eu não queria, eu juro, eu não queria, Marina. Mas ele chegou e se fez meu
inimigo. – Donato caminhava de um lado para o outro da nossa sala, colocava as
mãos na cabeça, coçava o queixo algumas vezes. – Ele invadiu o meu espaço,
tomou o meu lugar. E, de repente, vi tudo o que eu havia conseguido e o que
estava ainda por conseguir, ser ameaçado por ele, por essa mania que o Pedro
sempre teve de fazer justiça. Mas eu nunca lhe faria nenhum mal, eu juro que
não!
Nem
sei ao certo de onde estava tirando forças para superar a dor de perder meu
cunhado e ao mesmo tempo mostrar-me forte para ajudar meu marido, num momento
tão delicado para ele. Acreditava sim em sua dor, seu arrependimento. Nem
imaginava como seria dali para frente. E como ficaria Vanessa e Felipe quando
descobrissem?
A
morte de Pedro Lucena nos traria muito sofrimento!
CAPÍTULO 3
Meu
marido estava inconformado com o desfecho da emboscada a Pedro. Em pouco tempo
seria do conhecimento de todos. Sinceramente não sabia como ajudá-lo. Nunca o
vira daquela forma, desesperado, repetindo seu arrependimento. Tentei impedi-lo
de tomar mais uma dose de uísque, ele já se encontrava visivelmente alterado.
-
Donato, por favor. Você vai acabar ficando bêbado.
-
E o que importa, Marina? – Tomou o copo da minha mão. – Eu preciso relaxar.
-
Você precisa estar bem.
-
Para quê? Para o velório do meu melhor amigo? – Tomou novamente mais uma dose
de uma só vez. – Isso não poderia ter acontecido!
-
Mas aconteceu. Nós temos agora que pensar no que fazer.
-
Eu já fiz muita coisa errada, sabe? Passei por cima de muita gente, destruí
muitas pessoas pra poder subir na vida. Mas eu não queria matar o Pedro. Você precisa
acreditar em mim. Você precisa acreditar!
-
Eu acredito, Donato.
-
Acredita mesmo? – Era como se aquilo diminuísse sua culpa.
-
Claro. – E eu realmente acreditava. Era notória a sua dor. – Nós vamos
encontrar um meio de enfrentar tudo isso. – Na verdade, eu não tinha certeza se
íamos de fato. Eu precisaria apoiar minha irmã e meu sobrinho quando soubessem.
O que não demoraria muito. E não conseguia imaginar como administrar aquela
situação.
-
Pela primeira vez eu não sei o que fazer. – Ria de modo a conter o sentimento
de dor. A boca estava trêmula. Fazia um esforço sobre humano para se encontrar
no equilíbrio de sempre. Nem ao menos permitia que eu me aproximasse, como que
para se proteger em um invólucro de força e coragem, o qual eu sabia não existir
ali. Não reconhecia nele a determinação de outrora. Só então eu tinha clareza
de seus sentimentos por Pedro.
-
Pode ser que a Luísa esteja errada, que ele tenha apenas sido ferido, não sei.
– Tentava lhe passar tranqüilidade, a pesar de minha confusão de sentimentos.
-
Eu queria tirá-lo do meu caminho, mas não dessa forma. Ele não precisava estar
morto. Não precisava! Eu não queria! Não queria!
Donato
foi interrompido pelo toque do meu celular. Olhamos um para o outro,
apreensivos. Seria alguma notícia oficial? Eu teria que constatar. Deixei-o no
sofá e precipitei-me até o aparelho sobre a mesa de jantar.
-
É Vanessa. – Hesitei, como se aguardasse uma permissão para atendê-la, até
perder a ligação.
-
Por que não atendeu? – Donato procurou saber.
-
Eu não sabia se podia...
-
Como não? Deve ser notícias do Pedro.
-
Eu sei. – Temia exatamente isso. Era como se houvesse ainda uma esperança até
que tivéssemos a confirmação de outra pessoa. Certamente o corpo já havia sido
encontrado e minha irmã avisada.
Novamente
o celular tocou. E o nome de Vanessa no visor.
-
Atende, Marina. – Insistiu Donato.
Hesitei
novamente por um instante, e finalmente atendi.
-
Alô.
-
Marina? – Vanessa parecia ansiosa.
-
Sim. É você, Vanessa? – Procurei passar naturalidade.
-
Mataram o meu marido! – O tom era de desespero.
Vinha
a confirmação. Sim, Pedro estava morto. Meu cunhado, amigo. Uma for
indescritível. Olhei para Donato, já de pé, diante de mim, ansioso por
notícias.
-
Como assim? O que aconteceu, Vanessa? – Eu sabia o que havia acontecido.
-
Mataram o Pedro! – Falou baixinho, em meio ao choro.
-
E então, Marina? – Donato procurava saber, ansioso. – O que ela está dizendo?
Ela tem notícias do Pedro?
O
que fazer numa hora dessas? Sentia dor, queria proteger meu marido, ajudar
minha irmã. Eu me encontrava atônita.
-
Marina, mataram o Pedro! – Vanessa estava em desespero do outro lado da linha.
-
Calma, minha irmã. – Tentei amenizar, em tom de lamentação.
-
O que ela está dizendo? – Insistiu Donato. – Ela já sabe?
Fiz
que sim com a cabeça. Donato deu as costas, com as mãos na cabeça. Acabavam as
esperanças.
-
Vanessa, me fala isso direito.
-
Ligaram da polícia... – não conseguia completar pelo choro. – eles o
encontraram... na estrada do Porto das Dunas... a caminho de Fortaleza.
-
Mas o que eles disseram?
-
O Pedro foi baleado.
-
Sei. – Tentei manter a calma. – Mas, e aí?
-
Eu não sei detalhes.
Donato
jogou todos as garrafas de bebidas no chão, soltando um grito de ódio,
maquiando o visível desespero.
-
Drooooooooooga!
-
Vanessa, tenha calma. Eles disseram que ele estava morto?
-
Pelo amor de Deus, Marina, me ajuda! – Pediu Vanessa em prantos.
-
Você está onde agora?
-
Num taxi, indo para o hospital.
-
Nós vamos te encontrar aí, está bem?
-
Vem logo, pelo amor de Deus! Não sei se agüento isso sozinha.
-
Você não está sozinha. Eu estou com você.
-
Está bem. Vem logo!
Desligamos
o telefone. Donato estava diante de mim, trêmulo, contendo com muito esforço o
transtorno.
-
Ele está morto! – Afirmou com olhar fixo, como se assistisse a um filme em sua
mente.– O que foi que eu fiz, Marina? O que foi que eu fiz?
-
Você não imaginava que isso pudesse acontecer.
-
Eu matei o Pedro!
Caí
em prantos e corri para os seus braços. Não sei de onde Donato tirava tanta
força para se conter. Era notória a sua dor.
-
Ele não podia ter morrido! – Lamentei.
-
Não precisava.
-
E agora, Donato?
-
Não sei. Realmente eu não sei...
-
Eu te pedi tanto! Por que não ligou de volta pra Luísa? Por quê?
-
Não imaginava. Se eu soubesse...
Será
que Donato realmente não imaginava que aquilo pudesse acontecer? O vi diversas
vezes comentando com a própria Luísa que tiraria Pedro de seu caminho, custasse
o que custasse, que ele não atrapalharia mais os seus planos, nem que para isso
precisasse fazer o mesmo que fez com seu pai. Por mais que Donato negasse, eu
também desconfiava de sua participação na morte de Alberto Lucena, o pai de
Pedro. E eu ainda o havia alertado que o pior pudesse acontecer. Tudo sempre
fora calculado, todos os riscos. Por que justo naquele momento teria sido
imprudente? Eu sabia de sua dor, o que não diminuía a sua culpa. Pedro Lucena
estava morto e meu marido era o responsável.
CAPÍTULO 04
Finalmente
meu marido reencontrava o amigo. Pedro parecia bem, acompanhava Donato
aproximar-se, com um olhar tranquilo.
-
Quando a Vanessa me disse que você estava aí, quase não acreditei. Milagres não
têm feito parte de minha vida, nos últimos anos, sabe? - Disse Pedro, com um
sorriso meio sarcástico. E completou: - Veio se assegurar de que o serviço deu
certo?
-
Vim me assegurar de que você está realmente bem.
Estava
meu marido parado diante da cama, fitando seu grande amigo do passado, deitado
naquele leito, erguida, o que facilitava a leitura de um livro, que tinha na
mão, o qual logo deixou-o na mesinha ao lado, para voltar-se em atenção total
àquela visita inesperada.
-
Olha, Donato, dessa vez você realmente me surpreendeu.
-
De que está falando? Como eu te surpreendi?
-
Sua pergunta se refere à visita ou ao que me aconteceu ontem no Porto das
Dunas?
-
Refiro-me a sua surpresa.
-
Digamos que falo das duas coisas. Jamais esperava que você aparecesse por aqui,
principalmente depois de ontem. O que deseja?
-
Eu estava preocupado.
-
Comigo?! Que brincadeira é essa?
-
Sei que realmente parece estranho.
-
Claro que é estranho. Chega a ser esdrúxulo! Voltei ao Brasil há quatro anos,
declarei que encontraria aquele dossiê, o qual lhe incrimina, e quando
finalmente estou com ele em minhas mãos, sofro um atentado. E você, meu inimigo
declarado dentro da empresa da qual sou vice-presidente, vem ao hospital me
dizendo que estava preocupado... Donato, realmente é de assombrar, não acha?
Aproximou-se
ainda mais de Pedro, mantendo firme seu olhar.
-
Acredite ou não, estava realmente preocupado. Temi por sua vida.
-
Tudo indica que foi você, Donato. – Pedro falava como se justificasse a
desconfiança.
-
Pedro, existem muitos interesse por trás de tudo isso. Você não faz a menor
idéia. Eu jamais te machucaria.
-
Você está me dizendo que não foi você?
-
Eu estou falando que jamais seria capaz de qualquer coisa que pusesse em risco
a sua vida. - Voltou-se um pouco para a janela, como que para tomar fôlego e
prosseguiu. - Ontem eu tive muito medo... - Hesitou e continuou. - tive medo
que você tivesse morrido. - Procurava não olhar para Pedro, a fim de que o mesmo
não percebesse que seus olhos marejavam. - É também difícil para mim estar
falando isso, mas eu precisava te dizer, depois do que eu senti.
Pedro
estava imóvel, surpreso com a declaração. Quando Donato voltou-se a ele,
permitindo-se ostentar a fragilidade que tanto tentara esconder de todos, dele
mesmo.
-
Eu senti uma dor... quando eu soube que você havia sido baleado. -
Definitivamente, Pedro atônito. E ele prosseguiu, com a voz embargada pelo
choro enrustido. - Eu precisava te dizer isso, Pedro. Se eu não te dissesse,
acho que explodiria. Pensar na sua morte, ontem... - Respirou um pouco,
tentando conter o choro, e continuou. - ...foi como ser consumido por uma dor
física. Eu jamais me perdoaria! E de repente, eu vi um filme na minha cabeça. O
dia que a gente se conheceu, na faculdade, as brincadeiras, as namoradas, os
problemas que nós enfrentávamos juntos, as alegrias, as comemorações, os
porres, o quanto nós fomos amigos. E tudo isso me vinha rapidamente, e eu me
dei conta do quanto isso me fez, me faz falta. - Donato já tinha seu rosto
banhado pelas lágrimas, provocando a mesma emoção no amigo. - - Sabe, Pedro,
foi muito duro quando você pediu pra eu me afastar.
-
Donato...
-
Eu sentia que você tava jogando uma amizade de mais de dez anos fora por um
capricho da sua mulher, uma mulher que você nunca amou.
-
Eu tive medo de ficar longe do Felipe quando ele mais precisava de mim.
-
E eu tive raiva de você, por achar que o cara que eu sempre admirei pela
coragem e justiça, fraquejava logo comigo. Você não faz idéia do que
representava na minha vida aquela amizade, Pedro. Eu esperei tanto de você,
cara!
-
Esse é o maior problema do ser humano, a expectativa acerca do outro. Donato,
ninguém é perfeito. Todos nós estamos sujeitos a erros, fraquezas. Só que o
nosso maior erro se configura exatamente quando alimentamos o desejo de que o
outro seja como queremos, ou ainda que tome determinadas atitudes. Quando
fazemos isso, esquecemos que aquele desejo se presentifica por conta de
“nossas” questões, não do outro. Por isso a outra pessoa nunca conseguirá
atender as nossas expectativas e nós seremos eternos frustrados e decepcionados
com o mundo.
-
Eu não sei.
-
A nossa amizade sempre foi importante pra mim também. Mas o que estava em jogo
naquele momento, era o meu filho, a minha convivência com ele.
-
Hoje isso não é mais importante? Sim, porque hoje você está separado da
Vanessa, longe do seu filho. Por que não priorizou a nossa amizade?
-
Por que sermos tão simplistas com a vida? As nossas atitudes não nascem de
sentimentos isolados, elas têm um contexto emocional, do ambiente, do momento
em que vivemos. Hoje a realidade é outra.
Donato
enxugou as lágrimas, procurando findar a conversa.
-
Bem, eu precisa te falar isso.
-
E como nós ficamos?
Ele
deu as costas, como se fosse sair do quarto, parou um pouco, refletiu e então
respondeu:
-
Como você disse, a realidade hoje é outra. Você tem outras prioridades. Dentro
da RTN, nós lutamos pela mesma coisa.
-
Não. Errado. Dentro da RTN nós lutamos por coisas totalmente diferentes. Eu não
quero seu lugar, nunca quis. Desejo apenas justiça, só isso. O que
definitivamente se distancia cada vez mais daquilo o que você almeja dentro
daquela empresa, meu amigo.
-
Nós estamos em lados diferentes, Pedro.
-
Infelizmente!
-
Melhoras. Realmente quero lhe ver bem.
E
quando ia saindo:
-
Donato?
-
Sim?
-
Eu também sofri muito. E sinto muita falta do meu amigo!
Aquela
conversa não representou exatamente uma reconciliação, mas pelo menos passamos
a conviver de uma forma menos difícil. Vanessa e Donato não se suportavam.
Contudo, procuravam se respeitar na medida do possível. Tivemos até alguns
encontros, jantares na casa de minha irmã, com a presença de Pedro, ou na minha
casa, como na noite de natal. Meu marido e o velho amigo procuravam não
comentar assuntos que diziam respeito à empresa, mas falávamos de viagens,
lugares, comidas, vinhos, de coisas que não provocavam reflexões ideológicas, a
fim de preservarmos aqueles poucos encontros. Visto que Pedro evitava os
mesmos, por detestar, e bem sabia, situações políticas como aquelas. Tudo por
mim, para que eu me sentisse bem. E eu seria eternamente grata à minha irmã e
meu cunhado. Embora soubesse que no fundo Donato e Pedro gostavam de estar
perto, de sentir a presença um do outro, principalmente por parte de meu
marido.
Para
Pedro, na verdade, era como se fosse uma forma também de apostar no lado bom do
velho amigo. Era muito sentimento envolvido, o que chegava a transcender as
questões materiais, de cunho político empresarial ou ideológico. Quase que
diariamente se encontravam na Beira-Mar, quando faziam caminhada, limitando-se
os dois a se cumprimentarem.
Certa
noite, quando Pedro caminhava sem a presença de Tancredo Flores, como de
costume, acabara por se encontrar naturalmente com meu marido. Os dois
resolveram fazer sua caminhada juntos, naquele dia. E depois, saíram para tomar
uns drinques, como nos velhos tempos, quando corriam diariamente. Foi um
convite de Donato, o qual Pedro sentiu-se impelido a aceitar, por pura curiosidade.
Jogaram muita conversa fora, falaram do passado, riram bastante juntos, como se
estivessem distantes dos papeis de executivos os quais assumiam dentro da RTN,
lugar onde se enfrentavam diariamente.
Donato
e Pedro nem sabiam ao certo o quanto beberam naquela noite, mas o suficiente
para falarem de coisas as quais necessitavam falar há muito tempo. Do quanto
sentiam falta um do outro. Terminaram a noite, no apartamento de Pedro,
completamente bêbados, caídos um por cima do outro, na cama. Parece-me que
Donato tentara ajudar o amigo e acabaram dormindo ali mesmo. Acordaram no dia
seguinte, meio constrangidos. Amizade, rivalidade, afeto. Era uma mistura de
muita coisa.
E
na saída de Donato, Pedro resolveu revelar-lhe seu intento, dizendo ter exigido
de Leonardo Gondim uma auditoria dentro da RTN. Havia desistido do tal dossiê,
tendo sido o mesmo roubado pelos tais bandidos no dia do atentado. Estava
disposto, todavia, a descobrir as mesmas informações contidas naqueles
documentos, de forma legal. E achava honesto que ele, soubesse.
-
Vá em frente.
Foi
a única coisa que Donato lhe dissera naquela manhã. Pedro não fazia ideia do por
que de sua segurança. Nem eu fazia! O fato era que ele sentia-se seguro o
suficiente para saber que a tal auditoria jamais seria autorizada pela
presidência da RTN.
-
Donato...
-
Sim?
-
Mais outra coisa.
-
Diga.
-
Eu estarei sempre esperando por você.
-
Eu já esperei muito. – Bateu a porta, deixando o amigo para trás. Estavam em
lados opostos e nada mudaria aquilo.
CAPÍTULO 05
Precisava
estar na clínica na Avenida Dom Luiz às dezessete e trinta pontualmente para
uma consulta com minha oftalmologista. Saltei do taxi faltando apenas dois
minutos, depois de pegarmos um engarrafamento da Beira Mar, pela Avenida
Virgílio Távora. A simpática recepcionista me pediu para aguardar ainda alguns
instantes, a fim de que a doutora concluísse com o último paciente. Sentei e
folheei algumas revistas dispostas na mesinha de centro. Até ouvir a voz da
pessoa que estava sendo atendida antes de mim.
- Então espero a ligação de vocês para eu
pegar as lentes próxima semana.
Meu coração bateu mais forte ao ouvir
aquela voz. Há tanto tempo não a escutava. O homem alto vestia uma camisa
xadrez e jeans, o cabelo diferente, agora crescido e de lado, antes usava
curtinho e assanhado. A barba por fazer dava-lhe um ar despojado. Holanda sempre
fora bonito. Lembrei rapidamente de quando nos conhecemos, em frente ao nosso
prédio, na Beira Mar. Estava de moto e por pouco não me atropelou. Eu havia
ficado semanas presa em meu quarto. Donato queria impedir que eu me
reaproximasse de Vanessa e por isso me prendera. Na época achava que meu
casamento chegara ao fim. Holanda, um desconhecido, me levou dali para seu
apartamento e me escondeu por dias, embora não soubesse de quem se tratava. Tornamo-nos
grandes amigos, na verdade meu único amigo em anos de solidão naquele casamento
de fantasias. Fazia anos que não nos víamos, desde que viajara para a Espanha
para fazer seu doutorado. E de repente, estava ali à minha frente.
- Holanda? – Chamei, trêmula.
Ele voltou-se surpreso. Vi o brilho em
seu olhar, pela alegria de me encontrar. Não conteve o sorriso maroto.
- Marina?
Levantei, e sem que percebesse como, já
estávamos abraçados. O que pareceu eterno. Fazia tempo que não sentia aquele
cheiro. Uma presença que me foi tão importante em meio às crises de meu
casamento falido há quatro anos.
- Quando voltou? – Procurei saber.
- Tem uns dias apenas. – Respondeu,
afastando-se para me fitar. – Você continua linda! – E sorriu.
- Parece que Barcelona lhe fez muito
bem.
- Senti tanta saudade.
Corei com aquela declaração. Na certa a
atendente do outro lado do balcão sabia que eu era casada com o senador Donato
Pessoa. E estar ali abraçada com um rapaz, ouvindo declarações de saudade
poderia ser mal compreendido.
- E você veio de vez? – Tentei mudar de
assunto. Creio que ele percebeu.
- Sim, claro. Defendi a tese no início
do mês. Estou livre.
- Nossa, que vontade de estar de volta.
- Muita saudade desta terra. É bom
conhecer outros lugares, mas nada se compara ao nosso país, sabe? E tem também
as pessoas que amamos. – Disse aquilo, olhando bem para meus olhos. E mais uma
vez corei.
- Que coincidência nos encontrarmos
aqui. – Era uma forma também de dar uma satisfação para a atendente, que
certamente ouvia nosso diálogo, mesmo voltada para alguns documentos os quais
parecia organizar.
- Não acredito em coincidências. Foi
providencial. – Ele foicategórico.
- Com licença, dona Marina. –
Interrompeu a auxiliar de minha oftalmologista. – A senhora já pode entrar.
- Ah, sim. Obrigada. Já estou indo.
- Quando podemos nos ver? – Holanda
tentou saber.
- Podemos marcar.
E ele sorriu.
- Marcar? Isso é um “não vamos mais nos
ver”? – Indagou, sorridente. O que me deixou meio desconsertada.
- Não, não. A gente pode ver um dia sim.
- Pode ser amanhã? – Era assertivo. – Ou
melhor, eu posso esperar por você agora.
Estávamos bem diante da assistente de
minha oftalmologista e da atendente, do outro lado do balcão. Certamente eu estava
vermelha de vergonha. O que estariam elas pensando?
- Não quero causar nenhum transtorno. –
Falei, visivelmente desconsertada.
- Nossa, e lhe esperar vai ser realmente
um grande transtorno. – Brincou com uma cara de sério. – Tenho todo o tempo do
mundo, Marina. – Completou com grande sorriso, como se comemorasse o nosso
reencontro.
- Mas ao sair daqui eu tenho um
compromisso.
Mentira. Compromisso nenhum! Não poderia
me expor.
- Marina, é rápido. Tem quanto tempo que
não conversamos?
Três anos talvez desde a última vez em
que nos vimos.
Pensei rapidamente e aceitei que me
esperasse. Entrei para a consulta, deixando-o na recepção da clínica. Não
consegui me concentrar em nenhuma pergunta ou orientação da médica. A figura de
Holanda ali fora me aguardando não deixava espaço para mais nenhum pensamento. Fomos
tão próximos, tão cúmplices. Com seu jeito brincalhão, cuidadoso e presente ele
foi me conquistando aos poucos. E justo numa época em que me dava conta do quão
sufocante era meu casamento, tendo deixado minha carreira de modelo para trás,
família e amigos, como se fosse apenas mais uma propriedade de Donato, a quem
não precisava amar, mas me ter como um troféu, guardado em casa para raras
apreciações, em tempo corrido, quando lembrava. Holanda chegara a minha vida
fazendo-me sentir importante, valorizando o que eu sentia e pensava. Agindo
como eu desejava que meu marido o fizesse. Até o momento em que dei o basta a
meu casamento, tomei coragem e fui embora de casa, deixando para trás todos os
anos de silêncio em que vivi. Lancei-me de cabeça com Holanda na aventura de
conhecer as praias do Nordeste, de moto, levando com a gente apenas uma mochila
e o desejo de vivermos algo diferente, de experimentarmos a liberdade que
nossas relações não nos permitiam.
Holanda vinha também de uma relação de
alguns anos com Renato Brandão, sócio da agência de publicidade da qual ele era
diretor superintendente. Uma união que em muito lembrava meu casamento com
Donato. Os ciúmes de seu companheiro fora aos poucos deteriorando as bases do
sentimento que os aproximaram. Os últimos anos da relação foram mantidos muito
mais pela gratidão de Holanda em relação a ele, por tudo o que o havia
proporcionado profissionalmente, bem como por pena de deixá-lo, sabendo de seu
amor profundo, de sua dependência afetiva. E justo no momento em que Renato
descobrira o câncer de sua mãe. Aquilo acabara por adiar o inevitável. Após ter
a certeza de não mais amá-lo, Holanda desejava sair daquela relação sufocante e
sofria pela falta de coragem de tomar a difícil decisão. Não queria magoá-lo, e
por um ponto final naquela união, certamente o faria.
Holanda e eu viajamos naquele final de
ano de 2006 sem resolvermos nossas relações definitivamente. Era uma forma de
pensarmos e decidirmos realmente o que queríamos, que caminho seguiríamos
depois dali. E trinta dias depois, estávamos de volta. Eu, para meu casamento.
Ele, pusera um ponto final na união com Renato, pedira demissão da agência de
publicidade do companheiro e fora embora para Barcelona, dedicando-se ao seu
doutorado.
E de repente, três anos depois estávamos
um diante do outro, num encontro espontâneo, e felizes por nos vermos
novamente. Tivemos tanto em comum, não somente nossas histórias e relações
amorosas, mas a cumplicidade, o afeto, o cuidado, a preocupação um com o outro,
a profunda amizade que sempre nos aproximou.
Encontrava-me ansiosa para terminar logo
aquela consulta. O que conversaríamos? Para onde iríamos? Só de pensar, já
sentia um frio no estômago. Imaginei diversas vezes como seria nosso
reencontro, o quanto tínhamos para partilhar um com o outro. E tudo acontecera
de modo diferente. Encontramo-nos casualmente. Achava que ele me procuraria
logo que voltasse para o Brasil.
E Donato? Jamais aceitaria nossa
amizade. Para ele foi Holanda o grande responsável por nossa separação três
anos antes. Julgava-o manipulador, como se houvesse se aproveitado de minha
fragilidade, convencendo-me a encarar uma aventura na garupa de sua moto. Meu
marido não compreendia o papel de Holanda em minha vida naquele momento, que
mais me ouvia do que emitia qualquer opinião, oferecendo-me o que eu mais
necessitava – atenção, escuta cuidadosa e afeto. Nada mais!
Ao sair do consultório, minhas pernas
estavam trêmulas. O que justificava aquele nervosismo?
“Um amigo somente!” – Tentei acalmar a
mim mesma.
Aproximei-me de vagar da sala de espera,
onde Holanda havia ficado. E ainda do corredor, pude vê-lo sentado, foliando
uma revista. Não parecia nervoso como eu. Tolice a minha. Era algo só meu. Ele
estava diferente com o cabelo crescido, parecia até mais jovem. Talvez mais
bonito. Não perdera o bom humor.
- Holanda, já é tarde. Talvez fosse
melhor deixarmos para outro dia.
De onde eu tirei aquela ideia? Claro que
eu desejava sair com ele, saber de sua vida naqueles últimos anos, rir
bastante, curtir suas piadas, ouvir suas opiniões sensatas. Holanda era uma
companhia gostosa, poderíamos ficar conversando por horas seguidas.
- E ficarmos ainda mais ansiosos? –
Respondeu de pronto.
Ansiosos? Então ele também sentia-se
ansioso? Nervoso talvez, como eu.
- E você também está nervoso?
Como eu tive coragem de perguntar
aquilo? Esqueci completamente da atendente do outro lado do balcão. As palavras
pareciam ter saltado da minha boca, como se eu não tivesse controle.
- Mais do que na primeira comunhão. –
Respondeu seriamente. E depois sorriu. – Sério, olha. – Mostrou a mão,
simulando um tremor extremo.
- Louco! – E rimos. Senti vontade de
abraçá-lo. Holanda era engraçado e cativante ao mesmo tempo.
Minutos mais tarde estávamos presos num
engarrafamento na Avenida Dom Luiz. Faltava pouco para as dezenove horas. Holanda
dirigia tranquilamente e falava de sua saudade, da falta que sentia do trânsito
louco de Fortaleza naqueles horários de pico. Contava histórias engraçadas
vividas em Barcelona naqueles últimos anos. E tudo como uma dança sinuosa,
regida pelo caos promovido pelos carros em nosso entorno e suas aventuras com
os espanhóis. Eu ficava hipnotizada com o movimento de suas mãos, revezando-se
ao volante, o câmbio da marcha e gestos que davam ainda mais vida aos episódios
relatados. Ficaríamos horas naquele engarrafamento sem nos preocuparmos com o
tempo. Não fosse pelo toque do meu celular, eu permaneceria totalmente absorta
de minha vida cotidiana.
Era o nome de Donato no visor. E eu
hesitei.
- Algum problema? - Procurou saber ele.
- Não, nenhum.
Como não? Eu nunca saía de casa e ficava
tanto tempo fora sem dar satisfações. Talvez Donato não tivesse chegado em casa
ainda, mas certamente ligara e dona Deise havia lhe falado de minha consulta. Eu
já deveria ter voltado. Preferi silenciar o aparelho em vez de elaborar
qualquer explicação.
Paramos num restaurante nas proximidades
da Rua Frei Mansueto. Estivemos naquele local anos antes, e pouco tempo depois
retornei ali coincidentemente com meu marido, num almoço com líderes de seu
partido. Temia que alguém me reconhecesse, o que causaria muitas fofocas, já
que eu nunca era vista sem a companhia de Donato, principalmente ao lado de um homem
tão bonito.
- Eu estou meio desconcertada. – Revelei
logo que nosso pedido fora feito ao garçom. Tudo me chegava de modo
constrangedor, como se não me fosse permitido estar ali com Holanda. Mas um
amigo somente. Bobagem minha.
- Meio desconcertada? Eu estou
completamente desconsertado, desajeitado, desajustado depois que nos
encontramos. – Foi convincente e sério, depois sorriu e completou. – Mas é
infinitamente prazeroso me sentir assim novamente.
Conseguiu arrancar-me um sorriso.
- É sério, Holanda.
- Mas estou falando sério, juro! –
Afirmou, cruzando os dedos como duas espadas perpendiculares e beijando-os. Tomou
em seguida minhas mãos e completou. – Fiquei sim muito nervoso ao te ver
naquela clínica. Meu coração acelerou. Olha só. – Puxou-me, colocando minha mão
em seu peito, para que eu sentisse seu coração. Estava sim acelerado. Por um
instante, esqueci do mundo. E logo, voltei-me ao ambiente, procurando me
recompor.
- Não sei porque estamos assim, Holanda.
- Eu também pensei muito em como seria
nosso reencontro. Claro que não imaginei num conto de fadas, passeando um
barco, em um belo lago cheio de cisnes. Mas ficava pensando em como você
estaria, talvez mais linda do que da última vez em que nos vimos.
Certamente eu estava corada. E como era
prazeroso ouvir aquilo. Fomos interrompidos pelo garçom novamente, trazendo o
vinho pedido há pouco por Holanda. Ele entregou uma taça a ele, esperando que
sentisse o aroma e degustasse, autorizando sem seguida que nos servisse. O
ritual logo se concretizou. Apreciei a cena, recordando as inúmeras vezes em
que caía na imaginação, tentando vislumbrar onde ele estaria naqueles momentos.
Agregava um jeito divertido e charmoso ao mesmo tempo, simplesmente envolvente.
Desejei tanto ver seu sorriso de menino, como o chamava muitas vezes. – No que
falávamos mesmo? – Tentou saber logo após a saída do garçom. Falava ele de sua
imaginação em relação a mim.
- Não lembro. – Menti.
- Falava de como eu te imaginava. –
Certamente não estava intimidado como eu. – Você me intimida, Marina. – Cada
revelação me chocava, como se lesse os meus pensamentos. – Não achava que podia
ser assim. – Nem eu! – E sei que você também não. – Sintonia!
Falamos de tantas coisas, rimos tanto
juntos. Degustamos um vinho maravilhoso e saboreamos um peixe delicioso. Tínhamos
muito em comum realmente. Era como se não houvesse existido o intervalo de três
anos em nossa amizade. Tanto que não demos conta dos ponteiros do relógio
passar. Quando dei por mim, já passava das vinte e duas horas. E Donato? Que
desculpas eu daria? Atentei de verificar o celular e tremi ao ver as onze
chamadas não atendidas do número de meu marido. Havia deixado o aparelho no
silencioso, exatamente para evitar aborrecimentos.
Holanda fora extremamente gentil e
tratou de pedir a conta rapidamente, a fim de que eu me mantivesse calma. Sabia
como ninguém me trazer de meu mundo de preocupações e fazer-me rir de pequenas
coisas. Claro que as três taças de vinho que eu havia tomado me deixara bem
animada e menos vigilante. Ao sairmos do restaurante, ele me abraçou até o
carro, para me livrar do vento frio daquela noite. Havia chovido enquanto
jantávamos e o clima nos convidava a estarmos bem juntos.
No trajeto para casa, encontrávamo-nos
mais uma vez num universo só nosso. Silêncio e lamentação pelo fim da noite.
Num determinado ponto, em que paramos num sinal vermelho, ele me olhou e
estendeu a sua mão. Hesitei por um instante e depois pousei a minha por sobre a
sua. Ele a tomou num beijo demorado, até o sinal verde autorizar nossa
passagem, e continuou a segurando, colocando-a em sua perna. Senti-me ainda
mais nervosa, parecíamos dois namorados. E pior, ou melhor, era muito boa a
sensação. Desejei deitar em seu ombro, desfrutar mais de seu cheiro. Mas sentir
o calor de sua mão por sobre a minha já me trazia tanto prazer.
- Como vai ser agora? – Holanda quebrou
o silêncio.
- Como?
- Quando vamos nos ver novamente?
- Amanhã?
Amanhã? Talvez eu estivesse louca.
- Te pego que horas então?
- Às dez?
Sim, eu estava louca.
Logo paramos quase em frente ao meu
prédio na Beira Mar.
- Holanda...
- A noite foi como eu sonhava. –
Interrompeu-me.
- Como? – Queria ouvir novamente.
- Eu não imaginava como, o cenário, mas
desejei muito que fosse assim como foi.
Eu fitava um pequeno anjo de metal
pousado sobre uma base fixada no painel do carro. Holanda fora para mim num
passado recente um anjo protetor. Não queria que a noite acabasse.
- Foi muito bom estar com você
novamente, Holanda. – Falei quase tremendo, não sei se por conta do frio da
noite, do ar condicionado do carro ou se pelo nervosismo do momento. – Mas não
sei se é bom nos vermos novamente amanhã. – Questionei contra minha própria
vontade.
- O que acontece entre nós é muito forte
para frearmos por conta de formalidades, Marina. – Disparou ele,
desprendendo-se do sinto de segurança e voltando-se completamente para mim. –
Você está feliz? – Sua pergunta a queima roupas deixou-me desconsertada, sem
saber se ele perguntava acerca de nossa noite ou de minha vida como um todo. –
Falo de você, seu casamento, sua vida.
- Sim. Sim, estou. – E realmente estava?
Talvez melhor do que quando nos conhecemos.
- E por que desviou o olhar para me
responder?
- Como? – Eu não havia percebido.
- O seu olhar, você o desviou ao me
responder que está feliz.
- Mas eu estou.
- Viu? Novamente o desviou.
Sim, eu havia voltado os olhos para o
volante.
- Holanda, eu acho que o vinho me deixou
um pouco lenta. É hora de nos despedirmos.
- Então passo aqui às dez, como
combinamos anteriormente.
Apenas o fitei, sem nada responder. E
quando fomos nos beijar, por pouco não acertamos a nossas bocas. E rimos. Desci
do carro tomada pelo desejo de permancer ali em sua companhia. Não obstante, a
vida real me aguardava a poucos minutos. Enfrentaria Donato e uma boa desculpa
eu precisaria criar para explicar a falta de notícias por tanto tempo, coisa
que jamais aconteceria comumente.
Entrei em nosso apartamento
cuidadosamente, na esperança de que meu marido já estivesse dormindo. As luzes
estavam apagadas, exceto a do corredor que dava para os quartos, deixando toda
a sala na penumbra.
- Onde você estava até agora? – A voz
veio da porta do escritório. Eu estava perdida!
CAPÍTULO 06
Entrei
em casa temendo meu encontro com Donato. Que explicações eu daria? Como
justificaria meu sumiço, sem atender seus telefonemas? Era ele então na porta
do escritório, procurando saber onde eu estava até aquele momento?
- O demônio quer saber onde você está! –
A voz já vinha de trás de mim. Era o garotinho dos meus pesadelos. Ele era
pálido e tinha os lábios feridos de tão ressecados. As unhas crescidas e sujas
traziam restos de terra. Na bata que trajava, podia-se notar diversas manchas
de sangue. Cheirava a iodo. E não parecia mais ter apenas quatro anos, crescera
com o tempo.
- O que você faz aqui?
- Ele me mandou prestar contas. Respondeu com olhar esbugalhado.
- Quem? De quem você está falando?
- Do demônio.
O vento frio da Beira Mar que entrava
pelas janelas, invadia toda a sala e me provocava arrepios. Era real, não mais
um sonho. E onde estaria meu marido? Precipitei-me até o quarto, tiraria aquela
história a limpo. Eu estava louca? Ouvia apenas a melodia de uma caixinha de
músicas. E quando entrei em meu quarto, o garoto já estava lá, brincando perto
da cama, sorridente, ignorando a minha presença. Donato estava deitado, parecia
dormir.
- Donato? – Fui me aproximando de vagar.
– Donato? – O garoto permanecia ali, brincando, como se eu não existisse. –
Donato?
Ouvi o meu próprio grito ao ver aquela
cena horrenda, meu marido morto em nossa cama, banhado em sangue, com uma faca
em seu coração. Corri para junto dele.
- Donato, por favor, Donato! Fala comigo!
– Estava em desespero. O que havia acontecido em minha ausência? O garoto
estava do lado da cama, e me estendia as suas mãos, sujas de sangue, o sangue
de meu marido.
- Nãããããããão!
Acordei com meu grito. Estava numa
poltrona na sala. E Donato veio em meu socorro.
- Marina? Calma! Eu estou aqui.
Abracei-o fortemente, em choque.
- Você estava morto! Eu vi,você estava
morto!
- Não, eu estou aqui. Está tudo bem,
calma.
- Você estava morto!
- Eu estou bem, foi apenas um pesadelo.
- Mas agora eu faço justiça. – Era outra
voz e vinha de trás de Donato.
E de repente, meu marido toma um choque,
bem à minha frente. A ponta de uma faca emerge de seu peito, fazendo o sangue
se propagar na camisa que usava. Ele olhou assustado e sem fala para a
perfuração.
- Donato, o que foi isso?! Eu ainda me
encontrava transtornada.
Meu marido caiu bem diante dos meus
olhos. A figura do garoto surgiu sorridente por trás dele, estendo-me as mãos
banhadas em sangue.
- O que você fez? – Perguntei sem
compreender ao certo o que estava acontecendo. – O que você fez com meu marido?
- O mesmo que ele fez comigo. – Responde
de pronto, com a voz de um adulto.
Donato estava morto?
- Você o matou?!
- Não, ele me matou!
Olhei para a porta que dava para o
corredor e dona Deise assistia a cena balançando a cabeça positivamente, como
se concordasse com tudo.
- Dona Deise, o Donato está morto!
- Não, minha filha, você está morta. –
Respondeu tranquilamente.
- Como assim? – Olhei novamente para o
garoto e ele brincava com um urso de pelúcia, o ursinho que papai havia me dado
de presente pouco antes de sua morte.
- Você matou o meu marido!
- Não, ele me matou. – Garantiu olhando
bem para mim. Depois, foi até o corpo de Donato, puxou com dificuldade a faca
encravada em suas costas e começou a esfaquear o urso em suas mãos.
- Pare com isso! – E ele, continuava. –
Pare com isso, eu já mandei! – Continuava perfurando a pelúcia, começando a
machucar as próprias mãos.
- Pare! – Corri, tentando tomar a arma
de suas mãos. – Me ajude, dona Deise! Por favor, me ajude. – Ele tinha uma
força descomunal, como um homem adulto. Acabamos caindo e faca perfurando seu
abdômen.
- Ai, meu Deus! O que eu fiz? O que eu
fiz, dona Deise?!
Entrei em desespero. O garoto fora
esfaqueado por mim e caíra perto do corpo de Donato. Olhou para mim, com
dificuldade de falar.
- Você...você...
- Não diga nada, eu vou te ajudar! –
Estava em prantos. – Por favor, dona Deise, me ajuda, chama uma ambulância, ele
vai morrer.
Ela já não estava mais ali. Estávamos
sós.
- Você me matou! – Foi a última coisa
que a criança falou antes de perder seu espírito. Via-me ali, diante de dois
cadáveres, o corpo do meu marido e o de um garoto que aterrorizava os meus
sonhos há muitos anos.
- Alguém me ajuda, por favor! Alguém me
ajuda! – Gritava, para que qualquer pessoa ouvisse, e nada. – Meu Deus, o que
está acontecendo comigo? Eu estou ficando louca, só pode ser. É isso, e estou
ficando louca! – Olhava para aquela cena medonha e não sabia o que fazer.
“Você me matou!”
Aquela afirmativa ressoou em ecos dentro
de mim. Já não suportava mais aqueles sonhos. Nem sabia ao certo distinguir a
fantasia da realidade. Eu me encontrava realmente dentro de mais um pesadelo ou
meu marido morrera bem diante dos meus olhos? Aproximei-me do corpo do garoto
estendido em minha sala, tomei a faca encravada em seu abdômen. Era chegado o
momento de por um ponto final àquela história.
Tirando a minha própria vida eu acabaria
com tudo!
CAPÍTULO 07
A
imagem de Donato e o garoto dos meus pesadelos mortos bem diante de mim
proporcionaram-me uma sensação de dor inexplicável. O instrumento de suas
mortes em minhas mãos me mobilizava a acabar logo com aquilo de uma vez por
todas. Oito anos sofrendo com aqueles sonhos aterrorizantes, o que já me fazia
confundi-los com a realidade. Donato estava morto realmente? Pois continuava
ali, inerte, e o corpo da criança não mais.
- Donato, por favor! – Debrucei-me sobre
ele. – Donato, por favor, fala comigo! – Estava em estado de choque. –
Donaaaaaaaaaaaato! – Gritei desesperadamente. Sim, ele estava morto! E se o
garotinho não estava mais presente, havia sido eu. – Donato, abre os olhos,
responde! – Pus um fim à fantasia de nosso casamento tirando sua vida. Matei
meu próprio marido em meio a um surto psicótico. – Donaaaaaaaaaato! – E mais um
grito.
- O que foi, minha filha? – Era dona
Deise assustada, tentando conter meu desespero.
- O Donato... – Mal conseguia falar pelo
nervosismo. - ...o Donato, dona Deise... ele está morto! Olha. – Mostrei o
corpo aos meus pés. O corpo? Nada. Não havia corpo, não havia sangue, faca,
nada! Apenas os móveis de nossa sala, e eu tomada pela angústia. – Ele estava
aqui, eu juro! – Levantei, fui até à porta do corredor, percorri toda a sala de
estar de nosso apartamento com os olhos. – o garotinho, o Donato, eles estavam
aqui, eu juro! – Não havia nada, apenas nós duas. Dona Deise muito assustada.
- Minha filha, você estava dormindo no
sofá.
- Não, eles estavam aqui!
- Acordei com seus gritos. – Explicou
ela, como se lamentasse estar me desapontando.
- Mas era tão real. – Não sabia se
estava aliviada ou mais angustiada. Se Donato não estava morto, eu estaria
louca.
- Deve ter sido apenas mais um daqueles
seus pesadelos, filha.
- Não, dona Deise, dessa vez foi
diferente. – Sentei no sofá, apoiando as duas mãos nas pernas, na esperança de
trazer à memória os detalhes do havia acontecido. Ela se aproximou
cuidadosamente, sentando ao meu lado.
- Não sei o que aconteceu, dona Marina,
mas agora está tudo bem.
- Primeiro foi um pesadelo sim, mas
depois eu acordei, e aí tudo aconteceu bem diante dos meus olhos. – Já não
compreendia mais nada. – O Donato estava morto.
- Não, filha. – Trouxe-me para junto
dela, abraçando-me. – Agora está tudo bem.
- E onde ele está então? – Queria
confirmar.
- Quem?
- O Donato.
- Em Brasília. Precisou ir de última
hora, teve uma reunião urgente no congresso. Tentou ligar pra senhora, mas seu
telefone não atendia. Disse que liga amanhã cedo.
Acho que dormi nos braços maternos de
dona Deise naquele resto de noite. Recordei de quando fazia isso com mina mãe,
antes dela nos deixar. Sentia-me tão acolhida, tão protegida, como se nada, nem
ninguém pudesse ali me atingir. Estava tudo bem sim.
Acordei em minha cama, depois de uma
bela noite de sono. O sol se fazia presente pela janela de meu quarto. Os
ventos da Beira Mar preenchiam todo o ambiente em forma de assovio. Sentia-me
restaurada.
- Bom dia. – Dona Deise entrou com uma
farta bandeja de café da manhã.
- Bom dia, Dona Deise. Que horas são?
- Quase dez. – Respondeu, acomodando a
bandeja ao meu lado na cama.
- Dez? – Lembrei do combinado com
Holanda. Ele ficara de pegar nesse horário. – Eu preciso me arrumar. – Pulei da
cama num só impulso.
- Precisa tomar seu café. – Advertiu-me
dona Deise cuidadosamente.
- Eu estou de regime. – Tomei uma
torrada, um gole de suco e corri para o banheiro.
- Dona Marina, essa história de regime
vai acabar deixando a senhora doente.
- Não se preocupe dona Deise, nunca me
senti melhor.
Tomei um banho de no máximo cinco
minutos, e logo estava diante de uma mulher vivaz, no espelho de meu banheiro.
Há tempos não me sentia tão empolgada. Donato ficava tanto tempo no escritório,
em Brasília ou em reuniões do partido, e eu me sentindo geralmente tão sozinha,
sem amigos. Não fosse pela presença de minha irmã vez por outra, as idas à
academia ou às compras, minha vida seria um completo tédio. O sonho da
cumplicidade com meu marido, de passarmos horas conversando em intimidade, com
tudo de uma vida em comum, ou fazermos as coisas mais simples juntos, nunca
passara de uma utopia. Eu o amava e só.
Terminava de me aprontar quando meu
celular tocou. Era Holanda.
- Alô.
- Bom dia, princesa.
Princesa? Meu coração bateu forte ao
ouvir aquilo. Tão simples e tocante ao mesmo tempo. Nunca Donato me tratara com
tanto carinho.
- Bom dia. Acabei perdendo a hora. –
Tentei explicar.
- Não se preocupe, eu tenho o dia
inteiro para a gente.
O dia inteiro? Bom se eu pudesse.
- Holanda... – Como explicar que eu não
iria?
- Tenho uma surpresa. – Nem me deixou
concluir.
- Surpresa?
- É, sabe quando a gente prepara alguma
coisa sem que o outro saiba, mas a gente tem certeza que ele vai gostar? Isso é
uma surpresa.
Podia imaginar o sorriso do outro lado
da linha. Ele e seu bom humor permanente.
- Engraçadinho...
- Estou te esperando aqui no hall do seu
prédio. Beijo. – Desligou. Deixando-me se m alternativas.
Mas e se Donato chegasse de Brasília e
eu estivesse fora novamente? Ele não gostava que eu saísse de casa por tanto
tempo e com freqüência.
“A mulher de um senador da república não
pode se expor tanto.”
Como eu odiava aquela justificativa!
Sentia-me como mais uma de suas propriedades. Uma constante em nosso casamento,
sozinha, isolada de tudo e todos. Holanda fora o único amigo que eu havia
encontrado em todos aqueles anos de casamento com Donato Pessoa. Para ele a
amizade verdadeira era coisa de romance, visto ter sido abandonado pelo único
amigo que pensava conhecer, e tudo pelos caprichos de Vanessa. O rompimento de
sua relação com meu cunhado Pedro Lucena, havia potencializado sua descrença
nas pessoas.
Em pouco tempo a porta do elevador abriu
e pude visualizar a figura de Holanda sentado no sofá do hall de nosso prédio. Os
óculos escuros, o sorriso de moleque, uma camiseta amarela e uma bermuda cheia
de bolsos marfim, compunham um visual despojado.
- Demorei muito?
- O atraso faz parte do charme das
mulheres.
- E o charme dos homens está nos
galanteios.
Rimos e nos abraçamos.
A surpresa era um passeio de barco. Ele
mesmo estava no comando. Deixamos o Iate-clube de Fortaleza e podíamos nos
encher da maravilhosa visão da Beira Mar e seus belos prédios. Enquanto
manejava o leme, contava-me do sonho infantil de entrar para a Marinha. Parecia
uma criança falando, empolgado, feliz com todo aquele mar à sua frente. Atracamos
pertinho da Praia Mansa, a fim de desfrutarmos da paisagem que aquele lugar
podia nos proporcionar.
- Quando eu era pequeno, desejava
construir uma casa bem grande aqui na Praia Mansa e vir morar nela. Eu dizia
para a mãezinha que era uma ilha, a minha ilha. – Revelou Holanda, sorridente.
- E eu sempre perguntava a meu pai por
que não construíam uma estátua da liberdade aqui. – Partilhei também.
- E o que ele falava?
- Que um dia a construiria para mim.
- Seu pai parecia ser um cara bacana.
- E era. Chamava-me de “minha
princesinha”.
- E ele tinha toda razão.
- Como assim?
- Sobre a “princesinha”.
Rimos.
- Você e seus galanteios, Holanda.
- Eu, um cara galanteador? – Perguntava
com jeito sério. – Não, talvez inteligente.
- Por dizer o que eu quero ouvir?
- Jamais, por reconhecer o que é real.
Holanda dispunha do texto certo sempre,
era tudo o que eu sonhava ouvir de um homem, de Donato. Mas ele não era meu
marido, apenas um amigo querido. Um amigo que me fazia disparar o coração com
sua presença, seu sorriso de menino levado, suas histórias, seus galanteios, sua
beleza. Um amigo. Claro, um grande amigo. Jamais aconteceria nada mais que
amizade, eu era uma mulher casada e amava meu marido. E ele, ele era gay.
- De quem é mesmo esse barco? – Eu sabia
de quem era. Mas precisa confirmar.
- Do Renato. Vamos tomar um banho,
aproveitar esse marzão aqui aos nossos pés? – Desconversou rapidamente. O que
me chamou a atenção.
Holanda e Renato Brandão haviam se
conhecido na mesma época em que Donato e eu nos casamos, há oito anos. Ele, no
papel de estagiário da WM, a maior agência de publicidade de Fortaleza, e
Renato como sócio da empresa. O que facilitou seu crescimento profissional, em
pouco tempo, estavam apaixonados e morando juntos. Uma relação marcada pelos
ciúmes doentios do empresário ao rapaz treze anos mais jovem que sempre fizera
sucesso com as mulheres.
O estagiário de publicidade dividia-se
entre os sentimentos ainda confusos acerca do companheiro, a gratidão por lhe
proporcionar um mundo que ele não conhecia, social e profissionalmente, e o desejo,
a atração que ele nunca perdera pelo sexo oposto. Trazendo-lhe grandes
questionamentos sobre seu próprio caráter. O que acabou por desgastar a
relação, findando em sua viagem para Barcelona, com a desculpa do doutorado.
Entretanto, eu queria saber se eles
ainda estavam juntos, precisava saber!
Holanda tirou a roupa, ficando apenas de
sunga e pulou na água. Achava-o lindo. E agora com a barriguinha um pouco
saliente, parecia ter se perdido dos exercícios e academia com a finalização da
tese de doutorado.
- Vem, está ótima a água. – Chamou ele,
livrando o rosto da água.
- Estou com medo. – Nunca antes havia
nadado em alto mar.
- Vem, princesa. Você vai adorar. Pula!
– Insistiu. Tirei a roupa de vagarinho, enfrentando meu medo. Ajeitei meu
biquíni e sentei na beira da escada que dava na água. – Pula, vem. – Novamente
insistiu. E eu pulei, quase em seus braços. Temia me afogar. – Calma. Eu estou
aqui com você. – Procurou cuidar de mim. Estava bem à minha frente.
- Nunca fiz isso antes.
- Por isso era uma surpresa. – Sorriu,
trazendo-me mais calma.
- Você é louco.
- Eu? Jura? Tan-tan-tan... – tentou
fazer o som do filme Tubarão, com um olhar esbugalhado. Lindo! Parecia um
menino. Não contive a gargalhada. E ele me abraçou.
- O tubarão te pegou. – Disse-me ao
ouvido. E eu adorei!
- Esse tubarão é safado. – Respondi,
sorrindo.
- Não, está apenas feliz por ter pego
sua presa.
- Por isso ele é safado. Para ele eu sou
apenas uma presa. – Senti seu coração pulsar mais forte, encostado em meu
peito. Não era apenas o frio.
- Para esse tubarão você é mais que uma
presa. É uma princesa.
Ficamos um pouco em silêncio,
desfrutando da sensação maravilhosa que sentíamos ali, no calor do corpo um do
outro. Pude então sentir sua excitação. Como era gostoso estar ali com Holanda.
Aquele momento pareceu uma eternidade. E meu marido? Eu o amava. Nunca antes
senti aquilo por alguém, ou estive de tal modo com qualquer pessoa. Tratei de
sair do abraço.
- E Renato, como ele está? – Era uma
forma de quebrar o clima.
Primeiramente Holanda procurou se
recompor.
- Está bem. Muito trabalho, Renato é
grande investidor, e gosta de acompanhar todas as suas sociedades de perto, é
assim com a WM, com a Mirage e todos os outros negócios.
- Você está na casa dele?
- É, ele insistiu logo que voltei. Disse
que era inadmissível eu ficar em algum hotel, ou mesmo na casa de outra pessoa.
- Claro, foram tantos anos morando
juntos.
- Sim, foram muitos anos.
- E vocês se falavam sempre durantes
esses anos que você ficou em Barcelona?
- Com certeza. O Renato ligava direto.
- Ele ligava?
- É, ele.
- E... – procurei as palavras. – Vocês
ainda...
- Não. – Ele respondeu, antecipando-se à
minha pergunta. – Renato e eu não estamos juntos, Marina. Se é isso que você
quer saber.
- Então vocês já superaram?
- Eu acho que sim. Mas ele perdeu a mãe
tem pouco tempo, está carente, precisando de um ombro amigo, entende? Por isso
estou lá.
- Que bom.
Renato Brandão havia sido muito
apaixonado por Holanda e sofrera profundamente com o término do relacionamento,
depois da viagem do companheiro à Espanha. Sinceramente, não acreditava que ele
tivesse realmente superado, e para falar a verdade, certamente Holanda também
não. Talvez usasse aquela história da morte sua mãe para garantir a presença do
ex-companheiro ao seu lado, assim como fez na época em que fora descoberta sua
doença, antes de colocarem um ponto final na relação. O que eu não compreendia
era por que ele se submetia àquele velho e conhecido jogo de manipulação. Será
que Holanda também não o havia esquecido por completo?
Eu bem sabia o quão difícil era terminar
um casamento, por passar pela experiência há três anos, quando pus uma mochila
nas costas e acompanhei justamente aquele meu velho amigo a uma alucinante
viagem de moto pelo litoral do Nordeste. Voltando para os braços de Donato logo
após, por amá-lo. Talvez Holanda também ainda sentisse o mesmo por Renato,
apenas não conseguisse reconhecer. Se assim fosse, por que então aquele momento
na água? O que desejava de mim afinal? Mais uma de suas conquistas?
Subimos de volta ao barco e vi as seis
chamadas não atendidas de Donato em meu aparelho celular. Não tinha mais como
evitar, tratei de devolver as ligações.
- Alô, Donato?
- Finalmente! Onde você está?
- Eu? – Não sabia o que responder.
- Claro. Onde você está, Marina? Desde
ontem tento falar com você. Por que não me ligou de volta? Saiu à tarde para uma
consulta e só chegou em casa depois das onze da noite.
Dona Deise certamente já havia lhe
passado todo o relatório de chagadas e saídas. Ainda bem Holanda não interfonou
ou subiu até nosso apartamento. Caso contrário, Donato já estaria sabendo
também.
- Acabei encontrando com a minha irmã e
saímos juntas.
- Com a Vanessa?
- Foi. – Procurava falar baixo para que
Holanda não ouvisse as minhas mentiras.
- E agora, onde você está?
- Agora? – Olhei para a Beira Mar, de
onde dava para avistar nosso prédio. Donato jamais imaginaria onde e com quem
eu estaria.
- Onde você está, Marina? – Ele já
parecia impaciente.
- Na praia.
- Na praia?
- É, na praia. – Pelo menos não era
outra mentira.
- Com quem?
- “Com quem”?
- Dá para você deixar de repetir as
minhas perguntas e respondê-las?
- Com a Vanessa. Eu estou com a Vanessa.
- Esteve com sua irmã ontem até às onze
da noite, e hoje foram à praia? – Tinha um tom desconfiado. Odiava sua
perspicácia.
- Olha, Donato, nós já estamos quase
voltando. Depois nos falamos, está certo? – Procurei antecipar o fim daquela
ligação, ao ver Holanda se aproximar com duas taças de champanhe.
- Muito bem. Meu vôo foi antecipado e já
estou em Fortaleza. Espero você em casa para o almoço.
- Tudo bem. Até já.
Desliguei.
- Quem era? – Holanda procurou saber,
sorridente.
- O Donato. – Não queria mentir para
ele. Éramos amigos, não via necessidade.
- Volta quando de Brasília?
- Já está aqui. Vamos almoçar juntos. –
Lamentava desapontá-lo, havíamos combinado almoçar num restaurante novo que ele
conhecera.
Holanda apenas sorriu.
- E quando nos veremos novamente?
- Não sei.
A vida real me aguardava para almoçar e
certamente eu teria que lhe dar muitas explicações.
CAPÍTULO 08
Depois
de uma manhã maravilhosa no passeio de barco com Holanda era hora de voltar
para casa e dar as devidas explicações para meu marido. Já eram mais de oito
anos de um casamento sufocante com Donato Pessoa. Os sonhos da menina
apaixonada de quando o conheci em Londres foram despedaçados por seu apego
doentio ao que é material. E tudo ele transformava ou enxergava como tal. Sentia-me
como mais uma de suas muitas propriedades conquistadas ao longo dos anos. Por
mais que meu acesso a uma vida livre das quatro paredes de nosso apartamento
tivesse se alargado nos últimos quatro anos, desde minha viagem com Holanda,
ainda sofria com inúmeras restrições e sua ausência devido à política e ao
trabalho na empresa.
Entrei naquela tarde em casa sem saber
ao certo o que dizer, como enfrentar o provável interrogatório pelo qual seria
submetida. Donato estava no escritório, vendo alguma coisa em seu note book.
Preferi não adiar mais aquele encontro.
- Pensei que só voltasse à noite. –
Falei da porta entreaberta.
Ele fechou o aparelho, voltando-se a
mim.
- E eu que você tivesse sido
sequestrada. – Trazia no rosto o sorriso irônico que me oprimiu por todos
aqueles anos de casamento. Aprendi com o tempo o significado daquela expressão
dissimulada. Afirmava algo, mas era movido por sentimentos ou crenças
completamente diferentes. O charme e a beleza madura de voz rouca que tanto
haviam me encantado anos antes, davam lugar ao sarcasmo autoritário de um homem
que parecia sentir prazer em provocar medo e fragilidade nas pessoas.
- Logo após a consulta com o
oftalmologista fui encontrar com Vanessa. – Contornei a mesa para beijá-lo.
Desejava tanto que tudo fosse diferente.
- E ficaram juntas até tarde? – Tomou um
gole do uísque que estava ao lado.
- Sim. – Voltei, e sentei na cadeira de
frente para ele. – Ela não estava bem. – Detestava mentir.
- O que aconteceu?
- O de sempre, você sabe, problemas com
o Pedro.
- E hoje ela precisou mais uma vez falar
com você? – Trouxe um tom desconfiado, o que já me deixou desconsertada.
Definitivamente eu não tinha o menor talento para mentir, principalmente para
Donato. Ele conhecia bem o campo das mentiras, assim afirmava orgulhoso
costumeiramente, referindo-se aos negócios e à política.
- Isso. – Preferi não me delongar em
maiores explicações. Certamente eu já me encontrava corada.
Donato levantou e caminhou em minha
direção, posicionando-se atrás de mim. Minha respiração estava curta. Senti-me
exatamente num interrogatório. Acariciou-me as costas e os braços bem de vagar,
sem que eu pudesse sentir o menor afeto. Dissimulação pura, eu conhecia como
ninguém aqueles gestos calculados.
- Conte-me, querida. Onde você esteve na
noite de ontem e por toda esta manhã? – Perguntou quase ao meu ouvido. Ele
sabia que era mentira. Mas como? Como havia descoberto?
- Donato, eu já falei. – Talvez se eu
insistisse, ele acreditasse.
- Sim, você falou. – Pronunciava cada
palavra pausadamente. – Mas eu quero a verdade, Marina. Onde e com quem você
esteve?
- O que está acontecendo, Donato? –
Levantei, procurando manter certa distância. Ele não poderia pensar que me
tinha nas mãos. Conhecia bem seus jogos e estratégias.
- Você é que precisa me explicar o que
está acontecendo, não acha?
- Não, claro que não. Não tenho nada a
explicar. – Tentei ser o mais convincente possível. – Por que esse
interrogatório agora?
Donato se aproximou mais um vez, tocando
em meu cabelo.
- Por que está mentindo para mim? – A
pesar do teor da indagação, mantinha uma calma programada, inquieta. O que eu
não conseguia explicar, apenas sentir.
Fugi mais uma vez de seu olhar, de seus
braços.
- Não sei do que está falando, Donato.
- Hoje cedo falei com a sua irmã. –
Pronto, ele sabia sim da mentira. – Vanessa não lhe ver há vários dias. Quem
das duas está mentindo?
Vivia um casamento solitário há quase
nove anos. Com que direito aquele homem podia me cobrar alguma coisa? Destinava
mais tempo de sua vida à secretária Luísa do que à própria esposa. E naquele
momento exigia-me explicações por bobagens. Saí mesmo com um amigo, o que tinha
isso demais? Qual o problema de ter amigos? Conseguira me afastar de todas as
pessoas, isolar-me do mundo num universo só seu, no qual ele mesmo se fazia
ausente.
- Eu estou cansada dessa vida, Donato. –
Finalmente tive coragem.
- Cansada? Do que você está falando,
Marina?
- Desta casa, da sua ausência, de não
ter com quem conversar, de não ter com quem interagir. – Fui tomando pelo
choro, pela dor que me consumia e se arrastava em minha vida por todos aqueles
anos. – Estou farta de tudo isso, Donato!
Farta desse isolamento que se tornou a minha vida depois que casei com
você! Farta! Farta! Farta!
- Novamente essa história, Marina?
- Essa história faz parte de mim. Essa
história é a minha vida, Donato Pessoa.
- Nós já conversamos inúmeras vezes
sobre isso. Eu sou um homem ocupado. Muitas coisas dependem de mim. São os
negócios na empresa, a cadeira no senado, o Pedro Lucena que não me deixa em
paz tentando descobrir o que havia num dossiê fantasioso que o pai dele criou
ao meu respeito. Marina, a vida não é um conto de fadas.
- Você sabe que eu odeio quando você
menospreza os meus sentimentos.
- Não se trata de menosprezar ou não.
Isso é vida real, Marina. Você vive num conto de fadas, esperando um príncipe
encantado montado num cavalo branco. Eu não sou esse príncipe, não tenho tempo
a perder com contos de fadas. Eu sou o diretor comercial de uma das maiores
emissoras de televisão desse país! Eu sou um senador da república! – Falava
aquilo com tanto orgulho e ímpeto, que suas veias quase saltavam de seu rosto.
– Enquanto estamos aqui tratando de seus sonhos de menina mimada pela milésima
vez, tem muita gente tentando me derrubar, destruir tudo o que eu construí para
nós.
Para nós?! Não, nada daquilo era para
nós, apenas para ele mesmo. E ainda faltava, precisava ser o presidente da RTN,
o presidente de nosso país!
- Não existe “nós”, Donato. Nunca
existiu!
- Tolice, Marina. Você a minha mulher.
Tudo o que eu tenho é nosso.
Recordei-me de uma conversa de Donato e
Luísa, na qual ele a explicava por que havia se casado comigo em regime de
separação total de bens.
“Tudo o que eu tenho foi construído à
base de muita luta, muito esforço. Eu fiz por merecer. Casamento pode não ser
para sempre. Por isso, quero proteger o que é meu.”
Ouvia tudo atrás da porta, como tantas
outras coisas.
- Eu não quero nada disso, Donato.
- Bobagem, você a esposa de um homem
muito importante.
- Nunca quis ser esposa de um homem
importante, quis ser apenas a sua esposa.
- Tantas outras desejam estar em seu
lugar.
- Tantas outras que não querem um
marido, mas um homem rico para lhes sustentar.
- Todo mundo tem um preço, minha querida.
Bom mesmo é quando unimos o útil ao agradável. Dinheiro, poder e amor é a união
perfeita.
- O dinheiro, o poder são apenas conseqüências,
não um fim.
- Filosofia barata de quem não
experimenta este casamento. E quando experimentam, percebem o quanto perderam. Quer
conhecer alguém, dê poder a esta pessoa.
- Nem todo mundo é assim.
- Aprendi que mais cedo ou mais tarde as
máscaras caem.
- Nunca quis seu dinheiro, Donato,
apenas seu amor. – Fui saindo para por um fim àquela conversa inútil. Parei um
pouco e perguntei ainda: - Com quem você viajou?
Donato silenciou um pouco e depois
respondeu.
- Com Luísa.
- Como sempre. – Ela sempre esteve entre
nós.
Fui para o quarto e caí na cama em
prantos.
“Você vive num conto de fadas, esperando
um príncipe encantado montado num cavalo branco. Eu não sou esse príncipe, não
tenho tempo a perder com contos de fadas.”
Donato estava coberto de razão. Passei
todos aqueles anos de casamento sem viver o que era real, esperando que um dia
tudo fosse diferente, que ele cansasse da empresa, das mentiras na política, de
tudo o que era material, e se voltasse completamente para nós, para vivermos
nosso amor, simplesmente. Um conto de fadas que nunca aconteceria.
“Eu sou o diretor comercial de uma das
maiores emissoras de televisão desse país! Eu sou um senador da república!”
Donato Pessoa se resumia a seus cargos,
seu dinheiro, seu poder. Aquilo jamais mudaria. Quanto a mim, restava-me sair
do mundo de fantasias no qual eu vivia ou continuar esperando.
Peguei meu aparelho celular e liguei.
- Alô, Holanda? Preciso lhe ver!
CAPÍTULO 09
Holanda
tinha o dom de me propor fazer coisas diferentes, de me levar a lugares
inusitados e conhecer coisas novas. Pouco depois de nosso último encontro no
barco, fomos ao museu do Ceará. Quase não acreditei quando chegamos à calçada
do velho prédio histórico, na Rua São Paulo, no centro de Fortaleza. Há muitos
anos não andava ali, talvez desde a infância, quando meus pais ainda eram
vivos. O calor, o aglomerado de pessoas nas ruas, a vivacidade do centro da
cidade, tudo tão simples e verdadeiro, o que me fazia sentir mais gente. E
Holanda, como sempre, bem humorado, cuidadoso sem deixar que me escapasse aos
olhos nenhum detalhe de nosso desbravamento. Sentia-me uma adolescente, numa
aventura de escoteiros. Comemos abacaxi ali perto e ríamos ao sujar a roupa,
como duas crianças levadas. Tomamos caldo de cana com pastel no Leão do Sul, na
Praça do Ferreira. E depois, almoçamos num restaurante que ficava no andar
superior de outro prédio histórico da mesma praça, de onde podíamos ver a Rua
do Rosário. Mágico!
Coisas tão simples e me faziam tão
feliz. Não tinha como não comparar Holanda e Donato. Era como se o príncipe que
sempre esperei estivesse ali na minha frente. No entanto, não poderia ser ele.
Quem seria meu marido nesta história afinal?
Parei por um instante, hipnotizada, ao
ouvi-lo contar, sorridente, as peripécias de quando menino quando vinha com a
mãe e o irmão mais velho ao centro. Simples e encantador!
- Ei... – Holanda chamou-me a atenção.
- Oi. – Parecia sair de um transe
temporário.
- Você está onde?
- Como assim?
- Parecia estar longe.
Mais perto do que ele imaginava.
- Não, lembrava de quando eu era criança
também. – Mentira, encantava-me com ele e suas histórias, sua alegria, sua
presença viva em minha vida.
- Obrigado por aceitar meu convite.
- Obrigado nada, tem troco.
- Como assim, troco?
- Sim, depois terá que aceitar um
convite meu também.
- Ah, só isso? Fácil!
- Então não acredita que eu possa lhe
propor algo ousado?
- Digamos que não. – Fazendo cara de
sério.
- Holanda! – Repreendi-o. E ele soltou o
riso.
- Tudo bem, eu vou lhe dar um voto de
confiança.
- Chato! – Joguei-lhe uma bolinha no
rosto, feita com um guardanapo. E ele se defendeu.
- Ok,ok. Posso lhe dar dois votos.
E rimos.
- Posso participar da brincadeira?
Quase não acreditei ao ouvir aquela voz
grave. A figura de Donato estava do lado de nossa mesa, com um meio sorriso no
rosto. Era uma ilusão, um sonho? Ou mais um de meus pesadelos? Olhei
rapidamente para os lados, como se tentasse confirmar a realidade. Holanda nada
falou diante de meu marido, mas manteve a tranquilidade de segundos anteriores.
- Donato?
Era mesmo real?
- O que você faz aqui, querida?
- Eu?
Parecia ser verdade sim! Olhei para
Holanda, como num pedido de socorro. Ainda esperava que não fosse real. Como
explicaria?
- Sim, você. Você e seu amigo. –
Completou, olhando para Holanda.
Meu Deus, o que Donato fazia ali, em
plena semana? Deveria estar na RTN, em alguma reunião ou num restaurante mais
adequado a um homem de sua importância.
- Viemos... – hesitei. - Almoçar. –
Estava nervosa, embaraçada.
- Não vai me apresentar, querida? –
Perguntou Donato, referindo-se a Holanda. E este, mantinha-se da mesma forma de
outrora, completamente tranquilo. Como eu gostaria de me sentir assim!
- Ah, desculpe-me. – Tomei um gole de
água, e fiz as devidas apresentações. Holanda se levantou para falar com meu
marido. E tudo ocorreu com muita cordialidade.
- Vai sentar conosco? – Perguntou
Holanda a ele.
- Não, estou acompanhado de dois amigos
deputados, já almoçamos. E agora temos uma reunião. Infelizmente não poderei
ficar. – Finalizou a explicação olhando para mim, como se me dissesse algo. E
eu bem sabia do que se tratava.
“Marina, vá para casa e nós conversamos
mais tarde.”
Donato não precisou verbalizar aquela
ordem para que eu soubesse que pensara exatamente aquilo, ao ver-me ali com
Holanda.
- Nós também já estávamos de saída. –
Disparei no impulso, para amenizar a situação. Nem tive coragem de fitar os
olhos de Holanda. Não queria que ele testemunhasse o medo, a insegurança.
- Muito bem. Mais tarde conversamos,
querida. – Despediu-se, beijando-me. E antes de sair, olhou bem nos olhos de
Holanda, num longo aperto de mãos. – Foi um prazer lhe conhecer.
- Da mesma forma, Donato.
- Podemos depois marcar um momento para
lhe receber lá em casa. O que acha, querida? – Propôs Donato. Certamente já se
sentia em um jogo, e precisava dispor as cartas.
- Claro que sim. – Confirmei num
impulso, sem ter a exata noção das palavras.
- Será um prazer. – Respondeu Holanda
imediatamente.
- Então depois vemos isso. – Donato
finalizou o encontro, dando-me mais um beijo e saiu. Ainda à distância,
voltou-se rapidamente e nos fitou. Por um instante o vi piscar o olho para mim,
abrindo no rosto o velho sorriso sarcástico que me aterrorizou nos últimos nove
anos.
- Você está bem? – Holanda procurou
saber, segurando minha mão por sobre a mesa.
Tomei mais um gole de água antes de
responder.
- O Donato não sabia que eu vinha para
cá... – Hesitei um pouco. – Com você. – Completei.
- Ele pareceu reagir bem. – Procurou me
deixar mais aliviada.
- Você não o conhece como eu. –
Retruquei.
Reações mentirosas eram uma constante
para o senador Donato Pessoa. Aprendera que jamais poderia demonstrar seus
reais sentimentos. Aquilo seria fraqueza e uma vantagem para seu inimigo. E qualquer
pessoa poderia ser seu inimigo, até mesmo eu.
Pronto, minha amizade com Holanda já não
era mais um segredo. E obviamente, com sua perspicácia, Donato sabia de quem se
tratava. O homem com quem eu havia viajado, quando o deixei há pouco mais de
três anos, numa das crises de nosso casamento.
Donato Pessoa certamente se prepararia
para uma guerra, seu grande oponente, minha amizade com Holanda. Entretanto,
era chegado o momento de criar coragem e partir também para o ataque, como ele
mesmo sempre dizia, a melhor estratégia do vencedor.
CAPÍTULO 10
Aprendi
o duro jogo das relações naqueles nove anos de casamento com Donato Pessoa. E
no almoço em que ele havia me flagrado com Holanda eu bem sabia que entrávamos
em um novo jogo. Mas desta vez, sentia-me preparada, conhecia bem meu
adversário e suas principais estratégias, bem como suas fraquezas. E diferente
de todo o tempo em que calei meus sentimentos, dispunha-me a lutar, a enfrentar
o medo responsável por minha solidão nos últimos anos. Sentia-me uma nova
mulher, com mais vigor, destemida, disposta a confrontar as minhas verdades. Sabia
que meu principal adversário naquele jogo que se armava era eu mesma e minhas
fantasias. Chegara o momento de deixar desvelar o conto de fadas e acordar para
a vida real, e nela Donato não encarnava o papel de príncipe encantado.
Antecipei-me
e eu mesma tratei de formalizar o convite de Donato a Holanda no restaurante.
Finamente receberíamos o meu amigo em nossa casa para um jantar. Nem imagina no
que aquilo resultaria, mas confesso uma total falta de preocupação no que dizia
respeito ao futuro daquele jogo. Que viesse então o inesperado, como os
convites de Holanda.
Dona
Deise recebeu nosso convidado com toda a sua cordialidade. Eu havia colocado
uma roupa simples para não chamar a atenção de meu marido, no entanto nunca havia
me sentido mais bela. Ansiosa por aquele momento, pela inserção oficial de meu
amigo em minha vida. Dali para frente não se fazia mais necessário nos
escondermos. Todo aquele ritual representava um grito de liberdade, como se
quebrasse as amarras que eu havia colocado em mim mesma ao criar o casamento
dos meus sonhos em meu primeiro encontro com Donato. Ao enfrentar meu marido,
eu duelava com todos os fantasmas guardados em minha memória.
Holanda
estava radiante, diferente com o corte de cabelo e ainda mais lindo, trazendo
no rosto um sorriso de criança. Trajava uma elegante camisa de frio verde
escuro, de gola alta e uma calça verde musgo em corte moderno. Vestia-se sempre
de modo impecável em seu estilo jovial. Cumprimentou meu marido, entregando-lhe
o bom vinho que trazia.
-
Não sei se combina com o prato, mas a safra é muito boa. – Explicou Holanda,
referindo-se ao vinho.
-
Vejo que entende de vinhos! – Disparou Donato, com meio sorriso, inteirando-se
rapidamente das informações no rótulo da garrafa.
-
Digamos que não sou um especialista, mas um apreciador. – Respondeu ele
sorridente. E logo, voltou-se a mim. Meu coração estava disparado. Abraçamo-nos
e por um instante, parecíamos estar longe dali, de Donato, daquele mundo, de
tudo o que me aprisionava.
-
Que bom que veio. – Confessei baixinho.
-
Jamais perderia a oportunidade de estar perto de você. – Colocou Holanda, como
se não estivéssemos na presença de meu marido.
-
Eu já esperava que isso fosse acontecer mais cedo ou mais tarde. – Revelou
Donato com uma pasta na mão e seu velho sorriso sarcástico no rosto. Terminou a
dose de uísque que tomava, colocou o copo na mesinha ao lado do sofá e se
aproximou de nós. – Você acha que me faria de tolo por muito tempo, querida?
Do
que ele estava falando afinal? Senti Holanda um pouco apreensivo com a
aproximação de Donato.
-
O que é isso, Donato. – Procurei saber a respeito da pasta que ele segurava.
-
A verdade sobre vocês. – Respondeu, entregando-me a pasta. E dentro, fotos de
nossos encontros e um relatório.
-
Isso não prova nada, Donato. – Defendi de pronto.
-
Estou dentro de um filme e não me pagaram o cachê? – Ironizou Holanda.
-
Vocês nunca deixaram de ser vigiados. – Explicou Donato.
-
Você não tinha o direito. – Encontrava-me indignada.
-
De descobrir a verdade sobre a honestidade de minha esposa? – Parecia não estar
abalado, munido de toda a frieza de costume. – Você não é santa que sempre quis
parecer, Marina. A mulher desonesta que está nestas fotos lhe acompanhou
durante toda a sua vida. E eu sempre soube disso.
-
Do que você está falando? – Aquelas acusações estavam me tirando o controle.
-
Da assassina que existe em você. – Respondeu meu marido, tranquilamente.
-
Assassina?! – Rasguei tudo o que estava em minhas mãos num surto. – É mentira!
Mentira! Mentira! – Já estava aos gritos. Donato finalmente conseguia me
enlouquecer.
-
Marina, calma. – Holanda tentava me acalmar. Mas eu parti para Donato.
-
Desgraçado! – Queria acabar com ele, e com a louca que ele me transformara.
-
Não aguenta a verdade? – Provocou-me ainda, impedindo-me de agredi-lo.
-
Você é um desgraçado!
-
Não, errado. Você é uma desgraçada. – Falava com tanta calma, como se não
fizesse parte daquele momento.
-
Marina, o que está acontecendo afinal? – Holanda procurou saber, perdido em
meio àquela loucura.
-
A sua amante é louca, rapaz. Louca e uma assassina. – Explicou Donato,
segurando minhas mãos.
-
Mentira!
-
Do que ele está falando, Marina?
-
Da vida dele. – Respondi, ainda tentando descarregar meu ódio naquele homem.
-
Não, da verdade sobre esta mulher. - Disse Donato. – Você é uma assassina.
-
Mentira! Mentira! Mentira!
Ouvimos
então um tiro. E quando olhei para Holanda, ele estava pendendo, segurando o
peito, o sangue que consumia toda a sua roupa.
-
Holanda? – Olhei para ele e para Donato, sem entender o que acontecia. – O que
está acontecendo aqui?
-
Você acha mesmo que ficaria assim? – Perguntou Donato sorridente.
-
O que você fez?
-
O que deveria ser feito.
Corri
para Holanda. Ele estava morrendo.
-
Não! – Gritei desesperadamente. – Por favor, alguém me ajuda!
-
Ninguém vai lhe ouvir. – Afirmou meu marido, com a mesma tranquilidade de
antes. – Estamos a sós, para resolver nossas diferenças, querida.
Holanda
estava em meus braços, banhado em sangue, já perdendo os sentidos. O tiro havia
sido na altura do coração.
-
Holanda, por favor, fale comigo! Holanda, por favor! Holanda!
Desespero!
-
Como você fez isso, desgraçado? – Procurei saber de Donato.
-
Eu? Você fez. – Mostrou-me Flávio, nosso motorista em pé, perto da porta que
dava para a cozinha, de luvas, com a arma na mão.
-
Foi você?! – Falei, chocada.
Donato
tirou um lenço do bolso do blazer, pegou a arma de Flávio e me entregou. Pensei
em matá-lo. Peguei a arma e fui tomada por um ódio indescritível.
-
Pronto, querida, você matou seu amante. – Disse ele, sorrindo.
-
O quê?
-
As digitais que estão na arma, são suas. Você matou o seu amante.
Vítima
de uma armadilha. Voltei-me para Holanda que deu seu último suspiro.
-
Holanda, não! – Gritos e choro, a dor de viver aquele pesadelo. Holanda estava
morto me meu colo.
-
Você é uma assassina, querida. – Afirmou, aproximando-se ainda mais.
-
Foi você quem o matou!
-
Ninguém vai acreditar.
-
Pelo contrário, todos vão ter certeza de que foi você.
-
Não, nada disso. Tudo já foi pensado.
-
Você é um assassino!
-
Não, nós somos. – Corrigiu ele, com o velho sorriso no rosto.
E
de repente a campainha tocou. Eu estava no sofá de nossa sala e despertei. Um
alívio tomou conta de mim por saber de mais um de meus pesadelos. Dona Deise
veio abrir a porta e receber nosso convidado.
-
Você acabou dormindo, preferi não acordá-la. – Explicou Donato, tomando sua
dose de uísque, da porta do escritório.
A
sensação que ainda me invadia era horrível. Tudo fora tão real!
Holanda
estava radiante, diferente com o corte de cabelo e ainda mais lindo, trazendo
no rosto um sorriso de criança. Trajava uma elegante camisa de frio verde
escuro, de gola alta e uma calça verde musgo em corte moderno. Meu Deus, como no
sonho! Como eu poderia saber? Nunca o havia visto vestido com aquela roupa. Era
ainda o mesmo pesadelo?
Cumprimentou
meu marido, entregando-lhe o bom vinho que trazia.
-
Não sei se combina com o prato, mas a safra é muito boa. – Explicou Holanda,
referindo-se ao vinho.
Encontrava-me
assustada. Tudo igual a como tinha acontecido no sonho!
-
Vejo que entende de vinhos! – Disparou Donato, com meio sorriso, inteirando-se
rapidamente das informações no rótulo da garrafa.
Meu
Deus, o que estava acontecendo?!
-
Digamos que não sou um especialista, mas um apreciador. – Respondeu Holanda
sorridente. E logo, voltou-se a mim. Meu coração estava disparado. Tudo se
repetiria afinal?
Todas
as perguntas que Donato fazia parecia ter segundas intenções. E Holanda se
portando gentilmente como se não percebesse o que estava acontecendo, embora
estivesse atento a tudo e todas as colocações de meu marido.
E
foi na mesa, enquanto jantávamos que descobri o que tranqüilizou o meu marido e
fez com que aceitasse tão facilmente a minha amizade com Holanda.
-
Sabe, Holanda, admiro pessoas como você. Tão jovens e já assumido tanta
responsabilidade. Afinal, a WM é a maior agência publicitária de Fortaleza. E
você, administrá-la tão bem, mesmo em meio a tantas controvérsias dentro da
própria empresa. – Colocou Donato.
-
Controvérsias existem em qualquer organização. O mérito de um bom administrador
reside no diálogo tranqüilo que estabelece com elas. Você como político e
também como executivo, deve conhecer bem esta dinâmica. – Respondeu Holanda
serenamente.
Mas
Holanda havia voltado a trabalhar na WM? Por um instante pensei existir um
texto por trás das palavras de Holanda. Procurei, de todo modo, ouvir de forma
atenta a resposta de meu marido a ele.
-
Sabe como são as pessoas, não é? É do conhecimento do mundo empresarial que
parte da diretoria da WM não aceitou quando você assumiu a superintendência da
empresa. E novamente agora com seu retorno ao mesmo cargo. Na verdade, eu mesmo
não tenho nada contra você ter sido indicado por Renato Brandão, que é sócio da
empresa, tendo vocês o tipo de relação que vocês têm. Mas as pessoas, não
perdoam. Para elas, não é um profissional competente que está assumindo um
cargo, mas o “caso” do dono.
Foi
realmente uma situação constrangedora. Um comentário extremamente indiscreto e
invasivo, como que para deixar bem claro para mim que Holanda era homossexual e
vivia com Renato, de quem eu pensava tratar-se agora somente de um grande
amigo. Permaneci calada.
Contudo,
Holando não deixou por menos.
-
De fato você, nem ninguém tem nada a ver com isso. – Abriu um sorriso
sarcástico. – Não compreendo por que é tão importante para as pessoas os nomes
de nossos parceiros na cama. Estive pensando certa vez sobre isso. Imaginei que
não fosse tão imprescindível saber com quem nos deitamos, para daí julgar nossa
competência profissional a partir de nosso desempenho sexual, pois o mesmo não
define o caráter de ninguém. O que você acha? - Vi meu marido afrontado. E
Holanda ainda continuou. - Contudo, certamente você tem uma experiência maior
nisso, talvez até mais que eu. Afinal, segundo as más-línguas, chegou aonde
chegou com a ajuda de seu casamento com “a filha do dono”. Isso também é do
conhecimento do mundo empresarial. Veja que irônico, não, Donato? Acho que
temos muito em comum.
Pude
perceber meu marido engolindo aquele comentário a seco. Mas tinha provocado,
era apenas uma defesa inteligente de quem reconhecia um telhado de vidro.
-
Você voltou para a WM? – Resolvi intervir.
-
Voltei. – Respondeu, sem nada a esconder.
-
Por que não me falou nada?
-
Na verdade, tudo aconteceu na tarde de ontem. Donato está muito bem informado.
– Sorriu, olhando para meu marido. – Iria lhe contar exatamente hoje,
pessoalmente.
-
Vejo que estraguei a surpresa dos amigos. – Ironizou Donato.
Desejei
ter a oportunidade de conversarmos melhor, que Holanda me falasse de detalhes,
como havia se dado seu retorno à WM. E como estaria sua relação com Renato
Brandão? Teriam eles reatado? Permaneci
angustiada por todo o restante do jantar, totalmente mexida com aquela
revelação. Senti ciúmes!
-
O que houve, minha querida? Parece incomodada com algo? – Procurou saber
Donato, num determinado momento da conversa, flagrando-me ausente em
pensamento. A perspicácia parecia ter lhe feito enxergar o que eu mesma não
compreendia sentir.
Ponto
para Donato no jogo que havia estabelecido.
O
telefone celular tocou e meu marido precisou nos deixar a sós por alguns
minutos. Tudo parecia orquestrado por ele. O que esperava afinal?
-
Estou me sentindo no vídeo game. – Descontraiu Holanda.
-
Não está à vontade?
-
Você está? – Definitivamente não! – Ou melhor, você fica à vontade com ele em
algum momento? – Franziu a testa, num tom descontraído.
-
Que pergunta, Holanda!
-
Desculpa. – Sorriu. – Fui indelicado.
-
Tudo bem.
-
Precisamos conversar.
-
Sobre o que exatamente? – Eu sabia sobre o que era.
-
Sobre meu retorno à WM.
-
Por que não me falou nada.
-
Foi tudo repentino. Não queria tratar disso por telefone.
-
Como se assume a superintendência de uma grande empresa de forma repentina? –
Perguntava sem ter coragem de olhar em seus olhos.
-
Parece estranho, não é?
-
Não quando se trata de motivos puramente pessoais.
-
Refere-se a Renato?
-
Pode ser.
-
Vejo que seu marido conseguiu o que desejava.
-
Do que está falando?
-
Marina, por favor, entre nós não há necessidade de jogos.
Revelar
meus ciúmes? Não, jamais poderia.
-
Não jogo nenhum, Holanda.
-
Depois conversamos melhor sobre isso, eu te explico tudo. – Aproximou sua mão
da minha, por sobre a mesa e a tocou com ternura. – Senti saudades. –
Completou.
-
Eu também. – Retribuí no impulso.
-
Que coisa linda a expressão do sentimento verdadeiro. – Era Donato, fitando
nossas mãos. O que dizer então?
CAPÍTULO 11
O
retorno de Holanda à superintendência da WM deixou-me visivelmente abalada, por
não saber as circunstâncias de sua recontratação. Renato Brandão nunca o
esquecera, mesmo durante o longo período em que Holanda estivera em Barcelona,
fazendo o doutorado. Sua volta à agência podia representar também uma
reconciliação entre os dois. Cogitar esta possibilidade significava por em
xeque a índole de seu amigo. Amigo? Por que o incômodo?
Preparávamo-nos
para dormir Donato e eu, quando fui abordada por meu marido sobre a presença de
Holanda me minha vida.
-
Esse rapaz não é uma boa companhia!
-
O que quer dizer?
-
Insolente. Um comentário totalmente inoportuno sobre questões que não dizem
respeito a ninguém. Jamais poderia ter trazido esse assunto à mesa.
-
Você o provocou.
-
Eu era o anfitrião.
-
E por ser o anfitrião acha que poderia falar de sua vida pessoal e deixá-lo
calado?
-
Veja sua postura, minha querida. Já está em defesa de uma pessoa que chegou
agora em sua vida, contra seu próprio marido. Ele está lhe influenciando
negativamente.
-
Isso não é verdade, Donato. Qualquer pessoa me meu lugar nesse momento diria o
mesmo. Por receber alguém em sua casa, não dá o direito a ninguém de
desrespeitar esta pessoa. E você o fez. Foi no mínimo indiscreto.
-
Parece que lhe fizeram uma lavagem cerebral.
-
Apenas digo o que penso.
Pela
primeira vez não temia confrontá-lo.
-
Muita coisa mudou depois dessa amizade.
Percebia
claramente aonde desejava chegar com aquela conversa. Tratava-se de um jogo, e
em poucos instantes utilizaria as minhas próprias colocações para justificar o
afastamento de Holanda.
-
Não foi depois dessa amizade, Donato. Foi depois de tantos anos silenciando o
que está em mim. Simplesmente cansei.
Restava-lhe
somente tentar boicotar nossos encontros. Sempre que eu tentava marcar alguma
coisa com Holanda e Donato ficava sabendo, tratava de marcar algum programa
para o mesmo horário. Sabendo ele que sua companhia fora o que eu mais clamara
nos últimos anos. A jogada era certeira! Frequentemente desmarcava encontros
com Holanda por conta de meu marido, sem que eu me tocasse de suas verdadeiras
intenções.
Evidente
que Donato não se podia fazer presente sempre que Holanda e eu marcávamos
alguma coisa, então nos víamos pelo menos três ou quatro vezes por semana, em
algum shopping, meu apartamento ou mesmo no apartamento de Holanda. Tive também
a oportunidade de conhecer seu companheiro ou ex-companheiro, num almoço em sua
casa. Renato fora extremamente gentil, dissera-me inclusive que Holanda falava
muito em mim. Senti, entretanto, uma pontinha de ciúmes de sua parte. Aquela
informação, maquiada de brincadeira chegava-me com certa reclamação. Confesso
até ter sentido um tantinho de prazer ao perceber aquilo. Seria somente por
conta de nossos contatos quase que diários, pessoalmente ou por telefone, ou se
tratava de algo que Renato e Donato percebiam que estava por trás de nossa
relação ingênua? Ora, mas se Holanda era homossexual, não tinham com o que se
preocupar. Será que não? Certa vez, até senti vontade de comentar aquelas dúvidas
com Holanda, mas não tive coragem. Temi que ele pensasse algo errado de mim,
que eu estava interessada ou coisa parecida. Não, eu mesma não poderia trazer
aquele tipo de comentário. Se ele não trouxesse, então nunca falaríamos sobre
aquilo. E um dia ele teria de trazer, a não ser que era somente coisa da minha
cabeça. E isso eu estava certa que não era. Mais cedo ou mais tarde falaríamos
sim sobre aquilo.
Em
um de nossos almoços na casa de Renato, Holanda e eu ficamos a jogar conversa
fora, depois da saída de seu amigo para uma reunião na boate. Quanto a Holanda,
não precisaria voltar a WM tão cedo. Ficamos na sala de som, deitados no
tapete, ouvindo alguns CDs. Enquanto meu amigo deixou-me um pouco sozinha, para
pegar um suco na cozinha, fui surpreendida por um estranho barulho vindo do
lavabo, que tinha porta dando para esta sala. O barulho era de algo quebrando.
-
Holanda? É você?
Ainda
indaguei antes de me erguer, para verificar do que se tratava. E quando abri a
porta, o susto: Donato lavando as mãos sujas de sangue. Meu Deus, o que
significava aquilo?! O que meu marido estaria fazendo na casa de Holanda,
escondido ali, e como teria ele entrado? Fechei a porta rapidamente, como que
para pensar, no que fazer ou no que dizer. Estava completamente arrepiada,
sentindo as fortes batidas de meu coração. E podia ainda ouvir claramente o
barulho de Holanda, no cômodo ao lado, na geladeira, servindo-se provavelmente
do suco o qual saíra para pegar.
Bem,
Donato teria de me dar uma explicação. O que estava ele fazendo ali, depois de
invadir a casa de Holanda? E por que teria feito aquilo? Ciúmes? E o sangue? O
que era aquilo? E quando abri novamente a porta, já não era mais ele quem ali
estava, mas o garotinho de meus sonhos, o mesmo, da bata branca. Ostentando uma
cara de pavor.
-
Não faça nada comigo, por favor!
Eu,
fazer algum mal a ele? Não compreendia aquele medo, o terror que ele sentia na
minha presença.
-
Eu não lhe farei nenhum mal, não se preocupe.
-
Não confio em você.
-
Cadê o meu marido, que estava aqui?
-
Ele também é mau. “Vocês” são maus!
-
Não! Você está enganado.
-
Não estou. Olhe...
Mostrou-me
então os pulsos, cortados. O lavabo estava repleto de sangue por todos os
lados. No espelho, escrito no sangue já ressecado: “assassina”. Aquilo me fez
soltar um grito aterrorizante.
-
Nãããããããããããããão!
A
criança já não estava mais ali, ninguém estava. Holanda correra da cozinha,
para me acudir. Diante do lavabo eu chorava muito, pedindo que ele olhasse, que
procurasse por ele, o garotinho machucado. Nunca quis fazer mal a ninguém. E
não tinha sido eu quem havia feito aquilo com aquela criança. Holanda levou-me
de volta ao nosso canto, procurando me acalmar. Dizia não existir nada, ninguém
ali.
-
Calma, Marina, calma. Não foi nada. Foi apenas um pesadelo. Você deve ter
adormecido depois que eu saí.
-
Não, foi agora, Holanda. Você mal saiu e eu ouvi o barulho. Foi agora.
-
Já tem mais de meia hora que estava lá na cozinha. Preparava um lanche pra
gente, por isso demorei. Há alguns minutos eu lhe chamei lá, como não
respondeu, tratei de verificar e você dormia no tapete.
-
Mas...
-
Foi apenas um pesadelo. Já passou. E eu estou aqui.
Realmente
era confortante estar ali com ele, abraçada, protegida, como nunca antes
estivera ao acordar de um pesadelo daqueles. Podia sentir a maciez de sua mão
tocando-me o rosto e escorregando por meu cabelo. Sentia-me tão cuidada, era
tão bom e prazeroso o zelo por ele dispensado a mim.
-
Não quer falar sobre o que sonhou?
Sim.
Acho que era o momento de eu falar para alguém. Durante muito tempo tentei por
diversas vezes partilhar minha angústia com Donato, que nunca me deu ouvidos ou
menos atenção. “Todo mundo tem pesadelos, Marina.” Era a famosa frase que saía
de sua boca, em todos os momentos nos quais implorei por sua ajuda. Até que um
dia, simplesmente parei de tentar.
Era
uma coisa minha aqueles sonhos ruins, ninguém tinha nada a ver com aquilo.
Tratava-se de um fardo que e teria de carregar para o resto de minha vida. E eu
já estava conformada com isso. No entanto, encontrava alguém interessado,
empenhado em me ajudar. Talvez até se eu falasse, eles parassem de acontecer.
Lembro-me que mamãe dizia, quando eu era pequena, que se contássemos nossos
sonhos a alguém, eles não se tornariam realidade. Caso contasse a Holanda, poderia
não mais acontecer, ou ele me ajudaria a desvendar aquele mistério que me
acompanhava durante tantos anos, como uma mensagem, cuja representação eu teria
de descobrir. Como nunca conseguira desvendar sozinha, os pesadelos insistiam
em se fazer presentes, tornando meu sono um inferno.
Foi
o que eu fiz naquela tarde. Contei tudo o que lembrava a Holanda. Todos os
detalhes que vinham à cabeça, todas as lembranças daquele garotinho que entrara
em minha mente, nem lembrava a partir de quando. Mas já fazia muito tempo, anos
até. Holanda ouvia as minhas histórias atento, como se tentasse ali mesmo,
internamente, desvendar um enigma que existia por trás daqueles pesadelos. Em
nenhum momento, zombou de mim ou menosprezou os meus sentimentos, meus medos,
como meu marido o fizera, todas as vezes nas quais tentei partilhar-lhe de
minha angústia. Pelo contrário, senti-o cada vez mais preocupado, procurando
entender, perguntando detalhes e lamentando quando eu lhe falava de meu estado
emocional depois de acordar.
-
Marina, procure ficar atenta a todas as lembranças que você tiver sobre esses
sonhos. Nós vamos descobrir do que se trata e por que você tem esses pesadelos
há tanto tempo, sempre com a mesma temática, certo? Já começo e me sentir um
terapeuta! – Arrematou a própria colocação de forma lúdica.
Pela
primeira vez senti meu coração aquietar acerca daquele assunto. Confiava em
Holanda sim. Certamente logo eu estaria livre daquele tormento.
E
assim que encontrei com Donato, no final daquela tarde daquele mesmo dia
resolvi tentar mais uma vez. Se estávamos construindo um relacionamento
diferente, precisávamos partilhar tudo. Aqueles pesadelos me acompanhavam há
anos, não se tratava de algo banal, mas um tormento que fazia de meu sono um
inferno. E, tratar daquilo somente com Holanda e nada falar para meu marido,
chegava-me como traição. Traição à nossa cumplicidade, ao companheirismo que
necessitávamos nutrir em nosso casamento. E eu estava disposta a tentar mais
uma vez. Quem sabe até ele não teria uma outra postura, atitude, e me ajudasse
a desvendar aquele horror em minha vida. Sim, ele estava muito mudado e tudo
poderia ser diferente.
-
Ora, minha querida, ainda essa historia?
Como
aquele comentário me doeu. E ainda tentei:
-
Isso faz parte de mim, Donato. Sabe que tenho esses pesadelos há anos. Nunca se
preocupou comigo, como eu ficava.
-
Nunca me preocupei por achar que todo mundo tem pesadelos todos os dias. Eu
mesmo tenho quase diariamente. E acho isso completamente normal.
-
Mas o seus não são repetidos como os meus, não têm o mesmo conteúdo.
-
Mas são pesadelos também.
-
Você não compreende o que quanto isso é importante para mim.
-
Tudo bem, Marina. Depois a gente pode ver isso. Eu prometo que vou pensar numa
forma de lhe ajudar, está bem, minha querida?
Aquela
promessa, entretanto, não trazia em si nenhum foco de preocupação ou qualquer
vinculação com os meus argumentos. Fora uma tentativa frustrada. A mim, só
restava a ajuda amiga de Holanda, cujas reflexões eram propostas sempre que nos
encontrávamos.
Para
Holanda, as grades existentes na maioria dos pesadelos, ou grandes portas
trancadas representavam o meu sentimento em relação a meu casamento, cuja
liberdade fora tolhida, segundo o que eu mesma havia lhe falado. E fazia sim um
pouco de sentido. Eu vinha numa careira de modelo ascendente quando conheci
Donato, e de repente, com nosso casamento, deixei tudo. Afastei-me de todo e
qualquer amigo, de minha família, de qualquer possibilidade de expressão.
Sonhei, na verdade, a minha vida inteira com um grande amor e por desejar
possuir esse amor, abandonei tudo, minha carreira, minha família, amigos, minha
vida. Percebia, deste modo, que enquanto Donato desejava o poder enquanto
condições materiais, posição social e de organização de produção econômica, eu
o desejava enquanto sentimentos presentificados num grande romance. Tratava-se
do mesmo desejo, mas em dimensões diferentes.
Holanda
ainda me fazia refletir sobre meu casamento a partir de sua união com Renato.
Foi então que fiquei sabendo dos problemas os quais os dois enfrentaram antes
da separação. Na época ele não se encontrava mais apaixonado. Permanecia dentro
da relação, contudo, por pena, cuidado, gratidão, por medo de como seu
companheiro encararia o fim. Evidentemente, não era o meu caso. Sendo nós,
ainda apaixonados um pelo outro, mas a falta de diálogo e verdade dentro da
relação fazia-me perceber o quanto um casamento é levado à falência pelo desejo
dos dois de viver uma situação ideal e não cuidarem do que é real.
E
eu, naquele exato momento, estava cuidando realmente do que era real? Fiquei
feliz de saber da atual situação do relacionamento de meu amigo. Eles realmente
não tinham mais nada, a pesar de Renato ainda procurar uma forma de
reconquistá-lo. E por que isso me alegrava o coração? O que tinha eu a ver com
aquilo? Necessitava encontrar aquelas respostas se queria realmente viver a
verdade do momento real e não de um ideal. O real é o sentimento do momento,
como falávamos Holanda e eu.
Foi
então que eu questionei. Finalmente a coragem me chegou. Não fora ele quem
tomara a iniciativa, mas eu mesma. Em nome do real. Meu respaldo era a nossa
própria conversa. Assim eu não me exporia, nem a meu casamento. E rapidamente
encontrei uma forma de entrar no assunto sem ir diretamente ao ponto.
-
Mas as pessoas vivem muito no ideal, por isso talvez fantasiem tanto sobre a
vida das outras pessoas. Veja nosso caso. Pode ser impressão minha, mas às
vezes tenho a sensação de que tanto Donato quanto Renato sentem ciúmes de nossa
amizade.
Pronto,
era o que eu precisava. Daquele modo entraríamos no assunto, sem necessariamente
me expor. Talvez não tivesse no real, e não estava, definitivamente. Apesar de
ter consciência, não queria estar, pelo menos naquele momento. Se eu estivesse,
iria lhe dizer de minha alegria ao saber que não mais estava apaixonado por seu
companheiro, embora não soubesse por que. Bem, a semente fora plantada e agora,
seria apenas esperar o que dali brotaria.
Inicialmente
houve um silêncio. Depois a confirmação de que ele também sentia o mesmo em
relação a nossos pares.
-
E por que você acha que eles sentem ciúmes de nós, Holanda?
Perguntei,
mas tive medo da resposta. Senti meu coração acelerar e um frio subir em meu
estômago. Holanda aproximou-se de mim, tocou-me o rosto e lançou um olhar
atento sobre meus olhos. E de repente, olhávamos mutuamente o rosto um do
outro, a boca, os olhos, a boca. Estava eu trêmula, suando frio. Temia que me
beijasse. E se beijasse, o que significaria aquilo? Certo que a união com
Renato não estava nada boa, mas não era ele homossexual? E por que aquela
situação? Ergui-me então, procurando me afastar. Disfarcei, dizendo estar
atrasada, peguei minha bolsa e fui embora de sua casa, depois de nos
despedirmos, com beijinhos meio atrapalhados, onde quase acertamos a boca um do
outro, sem querer. Sem querer? Meu Deus, eu nem queria pensar naquilo.
CAPÍTULO 12
Mesmo
sem querer pensar, foi só o que fiz nos dias que se seguiram ao meu último
encontro com Holanda. Sabia que quase havíamos nos beijado. Ou não? Poderia ser
tudo imaginação minha. Talvez ele nunca tivesse tido a intenção. E se era coisa
de minha cabeça, o que representava aquilo em minha vida, em meu casamento? E
justo naqueles dias, Donato se mostrara mais distante, mais entorpecido nas
inúmeras reuniões da RTN e organização do partido, visto que as eleições seriam
dali a poucos meses e ele era candidato ao senado, cargo importante para a sua
vida. O que me irritava ainda era a presença permanente de Luísa em tudo o que
ele fazia. Sabia eu que não podia ser diferente, sendo ela a secretária e
pessoa de confiança, tanto dentro da empresa, quanto no partido. Donato
afirmava ser ela seus pés e suas mãos nesse momento de sua vida. Por isso
estavam juntos quase todas as horas do dia.
Mal
sabia eu que estava tão perto de flagrar a traição, o romance que acreditei
existir durante os nove anos de nosso casamento, além de vários outros na época
em que ele era casado com Maria Eugênia, e do intervalo entre um matrimônio e
outro. Luísa já estava com Donato há muitos anos. Minha grande inimiga vivia
realmente debaixo de meus olhos?
Estava
eu muito cansada. Recebemos diversas pessoas do partido para um jantar e uma
entediante reunião de planejamento da campanha, a qual evidentemente eu não
havia participado. Embora tivesse ouvido muita coisa do corredor. Eles
combinavam, discutiam a utilização de alguns milhões recebidos de uma empresa
que prestaria, segundo os mesmos, serviços ao governo, depois da eleição. Uma
troca de favores que ajudaria a estruturação da campanha, como a compra de
votos e cabos eleitorais nas cidades do interior. Tratei de entrar para o
quarto e não mais ouvir tanta sujeira.
Estava
no banheiro, diante do espelho, quando vi um vulto passando por trás de mim.
Não era nada, a primeira vista. E depois, o susto. Estava bem de trás de mim,
com sua imagem refletida no espelho, o garoto de meus pesadelos.
-
Você nunca gostou de mim.
Era
uma vez melancólica. Voltei-me para fitá-lo de frente, mas imagem não existia.
E quando retornei ao espelho, lá estava ele, no mesmo lugar, bem atrás de mim.
-
Quem é você?
-
O que eu te fiz?
E
saiu pela porta, entrando no quarto. Ventava intensamente e as cortinas eram
jogadas de um lado para ao outro. O
garotinho já estava sentado no meio do quarto, encolhido, como se temesse algo.
À sua volta, um círculo de velas pretas, cujo fogo não se intimidava pela ventania.
-
Quem é você, garoto? Já chega! Eu não agüento mais!
Minha
voz, carregava consigo todo o meu cansaço daqueles pesadelos. E como estava
farta.
-
Me diz, garoto, o que isso significa?
-
Os portões começaram a se abrir.
-
O quê? O que você disse?
-
Os portões, que te prendiam, começaram a se abrir.
-
O que você está falando, menino?
-
Por que nunca gostou de mim?
-
Por que você me dá medo, sempre me deu.
A
cama nos separava e eu temia me aproximar.
-
Dói o que você fez comigo.
Mostrou-me
os pulsos cortados. E então, já estava banhado em sangue e as velas tinham dado
lugar a uma série de facas, canivetes, serrotes e outros instrumentos
pontiagudos.
-
Não fui eu!
-
Foi sim, com a ajuda dele.
-
De quem? De quem você está falando?
-
O Demônio!
Um
pavor tomou conta de mim. Os olhos dele sangravam e os dentes estavam podres.
As unhas crescidas deixavam cair uma terra escura e mal cheirosa. O garotinho
parecia um monstro. E de repente, sua voz:
-
O demônio está do seu lado.
A
voz, era rouca, de um adulto e parecia destruir meus tímpanos. E então, fui
tomada por uma terrível dor de cabeça. E ele gritava, cada vez mais alto.
-
Assassina! Assassina! Assassina!
E
ria, num riso aterrorizante.
E
eu, desesperada, corri quarto a fora. Precisava de ajuda, de sair dali. A casa
já vazia, ocupada apenas pela ventania que entrada pelas janelas. E quando abri
a porta do escritório: Meu marido, de calças baixas, numa penetração anal com
Luísa. Os sussurros dos dois, aguçavam ainda mais a minha dor de cabeça. E
quando perceberam a minha presença, ali, perplexa, em pânico, pararam
rapidamente o movimento de fricção detentor de todo o seu prazer. O olhar de
Donato foi de pavor. Os dois, perplexos diante de mim. Saí dali correndo,
desesperada de volta ao meu quarto. E tudo parecia normal. As janelas estavam
fechadas, nenhuma presença, nada. Já não sabia mais o que era realidade ou
loucura. Há poucos segundos eu deixara ali o garoto, transformado em um monstro
e então, nada mais restava. E Donato? Era real ou parte de meu pesadelo? Teria
eu finalmente descoberto o romance?
Corri
de volta em direção ao escritório novamente. Daquilo dependia a minha vida, o
meu futuro. E quando entrei, ele estava sentado em sua mesa, diante de seu
computador, vendo e-mails.
-
Olá, minha querida. Ainda acordada?
A
voz era tênue. Não era de uma pessoa que havia acabado de ser flagrado pela
esposa, transando com a secretária.
-
Cadê ela?
-
Ela quem?
-
Ela, a Luísa. Cadê?
Creio
que meu grito pode ser ouvido no apartamento inteiro.
-
Como assim a Luísa? Minha querida, você está bem?
-
Estava aqui com você, eu vi.
-
Sim, estava. Mas já se recolheu há algum tempo, logo que o pessoal do partido
saiu. Marina, o que aconteceu?
Eu
já não sabia realmente no que acreditar. Aquela cena parecia ter sido bem real.
Mas ele tinha razão. Tudo parecia perfeitamente no lugar e Luísa não estava
ali.
Dormi
com certa dificuldade, abraçada fortemente com Donato. A sensação era que a
qualquer momento, tudo poderia acontecer novamente, ele poderia voltar, o
garoto, o demônio.
No
dia seguinte, fui surpreendida com a visita de um médico amigo de meu marido.
Era um psiquiatra.
-
Querida este é o Dr. Roberto. Eu contei seu caso para ele. Acho que pode nos
ajudar.
Ajudar? Senti-me traída por Donato. Como ele pôde
fazer aquilo? Ele não tinha o direito de contar nada a ninguém sem a minha
autorização. Um psiquiatra? O meu problema maior era de afeto, ou falta de
afeto, isto sim. Que ele ficasse com o seu psiquiatra então. E foi o que eu lhe
disse, aos gritos, deixando-os sozinhos. O que eu precisava naquele momento,
era da presença de Holanda, de seu ombro amigo, de sua ajuda.
Holanda
encontrava-se todo animado, procurava uma pessoa, uma modelo que encarnasse uma
grande campanha publicitária de jóias e tivesse um rosto desconhecido. Para
ele, era eu a pessoa certa ao que a WM precisava naquele momento. Acreditava
que o cliente se encantaria quando se deparasse com meu book, anexado à
proposta publicitária idealizada por ele e sua equipe. Segundo meu amigo,
estava eu com a chave de minha prisão em minhas mãos.
Teria
ele razão se a minha vida representara naqueles últimos seis anos, desde meu
casamento com Donato, um gigantesco aprisionamento. E talvez tenha sido eu
mesma o meu grande algoz, não meu marido e nem o mundo oferecido por ele a mim,
mas as minhas escolhas, a fim de agarrar aquele mundo com unhas e dentes, com
todas as forças que eu dispunha. Colocara em minha união com aquele homem o
sentido da minha vida. Minha motivação, daquele modo, era externa e não de meu
coração. E por ser externa, nunca a alcançaria, visto que o objetivo real
jamais é a coisa em si, mas o que é proporcionado por ela. E se a motivação é
externa, o que ela proporciona também o é, estando assim, distante do que é
essencial, interno, da alma.
E
de repente, tudo ficava claro. As conversas com Holanda me faziam refletir
diversos aspectos de minha existência, bem como da dele. Percebíamos o quanto
estávamos longe de nossa felicidade enquanto optávamos por algo fora de nós
mesmos, por termos as coisas, as pessoas ou as situações, cujas vivências
considerávamos como ideal às nossas vidas, deixando de vivermos o convite do
momento, o que realmente experimentávamos, que era o presente.
Bem,
se era de meu desejo salvar meu casamento, necessitava não da aprovação, mas de
partilhar a possibilidade de retorno à vida útil com meu marido. Para Donato
seria inadmissível a mulher de um político, utilizando-se do corpo ou da beleza
para ganhar a vida. Chegava para ele, quanto para o mundo da política, como
desmoralização. E naquela altura do campeonato, seria ainda mais complicado,
sendo ele um senador. Para mim, no entanto, não importava mais o que pensaria.
Encontrava-me decidida a fazer uso da chave e abrir os grandes portões de meu
aprisionamento, do mundo criado por mim mesma, na tentativa fugir da realidade
e viver longe da possibilidade de sofrer, que o mundo real me oferecia
potencialmente.
Conversa difícil aquela. Não hesitei,
contudo. Logo após chegar em casa, partilhei a novidade com Donato. O discurso
usado fora o mesmo de nove anos antes. E o vi furioso, desejando aniquilar com
aquele “viado, filho da puta”, segundo ele. Referira-se a Holanda de forma
pejorativa, como que para sangrar parte da fúria gerida por aquela informação.
Disse-me também coisas horríveis, considerando um desequilíbrio de minha parte.
Para meu marido, sofria eu então de um desvio de personalidade, tendo tido
acesso a um universo com ele durante os anos em que estivemos casados,
realidade à qual fantasiei-me. E naquele momento, cansada do papel assumido
durante tanto tempo, deixava-me envolver com a possibilidade de uma nova
personificação. E mais, que eu me encontrava inebriada por aquele “viado”.
-
O que você está querendo dizer com isso? – Procurei entender.
-
Ele exercita o baixo testosterona com você? – Provocou-me.
Mal
terminei de ouvir aquela barbaridade e já vi minha mão em seu rosto. Senti-me
agredida e necessitava pôr o fim. O que mais me alegrou em tudo aquilo, foi a
sensação de enfrentar aquele homem a quem tanto temi, de igual para igual.
Passara os últimos nove anos me portando de forma submissa, como se meu pai
fosse. Talvez pela diferença de dezoito anos. E finalmente, tinha eu, Marina
Pessoa, coragem de enfrentá-lo enquanto marido, enquanto adultos que éramos,
discordantes de diversos pontos de vista.
E
diferente do que Donato concluía, não fora Holanda quem me fizera pensar
daquela forma, mas o meu cansaço de uma vida sem sentido, achando que o outro
era a razão de minha existência. Em parte, tinha ele razão. Realmente havia
encarnado uma fantasia, cujo carnavalesco era o meu desejo de poder ter um amor
pleno. Naquele momento, percebia que eu não poderia ter um amor, mas vivê-lo.
Sendo esta vivência que faria de minha vida plena de significados.
Depois
de lhe conceder o merecido tapa, dei-lhe as costas e antes de sair, voltei a
ele mais uma vez.
-
Agora tudo está claro, Donato. Talvez esse retorno tenha sido um grande erro.
Eu quero me separar de você!
Deixei-o
no escritório, consumido pelo ódio gerado por aquela situação. E Donato desejou
matar o responsável, segundo ele, pela minha lavagem cerebral. Era mais fácil
encarar daquele modo, responsabilizar alguém, Holanda, por seu fracasso. Sim,
para ele, um ponto final em nossa relação marcado por mim, significaria o seu
fracasso, perder mais uma pessoa. E mais uma vez, deixou-se tomar pela mesma
fúria que lhe fizera companhia durante toda a sua vida, diante de qualquer
situação problema, na qual corria o risco de perder alguém a quem considerava
sua propriedade. Preferia entrar em contato com o ódio do que com o sentimento
que a perda lhe causava. Sentia-se fraco ao experimentar o medo de perder, a
tristeza de estar distante daqueles a quem amava. Por isso, não poderia
alimentar aquele tipo de sentimento. Era preferível alimentar o ódio que a dor.
Num
segundo, Donato pensou em ligar para alguém. Pedro Lucena. Somente com ele
poderia ser franco, sem medo de se expor. E foi o que o fez. Dali a pouco mais
de meia hora, estava ele no apartamento do velho amigo, falando do quanto eu
era importante em sua vida e que não poderia viver longe mim, imaginando-me em
um outro universo, vivenciando outras coisas, com outras pessoas.
Cuidadosamente, Pedro tentava mostrar-lhe que era exatamente aquele tipo de
sentimento, de posse sobre mim, sobre as pessoas, sobre as situações, que me
afastara dele, e me fazia então desejar estar longe.
-
Mas ela é minha! – Declarou Donato de forma imperiosa.
-
As pessoas não são umas das outras. – Retrucou Pedro. – Olhe para sua vida, Donato,
o que você fez. Conquistou dinheiro, posição social e profissional, o respeito
de algumas pessoas, o medo de outras, o desprezo de mais um tanto e pena de
outras mais, das que realmente gostavam de você. E diante de tudo isso, você é
feliz?
Para
meu marido era difícil responder. Sempre dizia não existir a felicidade, mas
momentos felizes. Então se a felicidade era um conjunto de momento felizes,
feliz era, quando conquistava algo desejado, fosse um carro, uma jóia, uma
negociação, estar com alguém. Era aquela a felicidade por ele conhecida.
-
E a paz de espírito? Essa é proporcionada quando amamos realmente. – Completou
Pedro.
A
paz de espírito certamente Donato Pessoa não conhecia. Ou talvez tivesse
experimentado alguma vez em menino. O fato era que Pedro Lucena e eu torcíamos
para que aquelas coisa lhe fizessem sentido e ele pudesse enxergar o quanto
fora infeliz a sua vida inteira, desejando poder ter cada vez mais.
-
Obrigado, meu velho amigo. Eu já sei o que fazer. – Concluiu.
Donato
saiu da casa de Pedro decidido a procurar por Holanda. E no dia seguinte, o
fez. A linguagem conhecida por ele era a da autoridade. Exigira que aquele
homem se afastasse de mim, alegando estar ele atrapalhando o nosso casamento.
Afirmara-lhe ainda de meu péssimo estado de saúde emocional e que se insistisse
em jogar-me contra ele, contribuindo para o meu desequilíbrio psíquico, seria
obrigado e me internar, a fim de preservar a minha saúde. Holanda ainda tentou
retrucar, questionar os métodos desonestos de meu marido conseguir o que
queria, sendo em vão. Meu amigo não esperava enfrentar a fúria de um marido
desesperado, temendo perder sua esposa.
-
Afaste-se de minha mulher, eu o aviso, seu filho da puta! – Ameaçou-lhe Donato.
Naquele momento, nem mesmo o receio de se expor escândalo freara o ódio que
alimentava de Holanda. Donato Pessoa sucumbira ao instinto de auto-proteção.
Seu desejo era de aniquilar com o mal, cujas raízes aliciava seu casamento.
Holanda
temia pela ameaça de meu marido a meu respeito, por isso passara a me evitar.
Não atendia os meus telefones ou quando atendia, tratava de inventar alguma
desculpa para não me ver. Decidi então, procurá-lo.
-
Por que está fugindo de mim, Holanda?
Estávamos
um diante do outro, em sua sala. Sujeitos à verdade ou a algum subterfúgio que
preservasse minha pseudo-liberdade e impedisse uma provável internação numa
clínica psiquiátrica. Encontrava-me curiosa e feliz. Curiosa de saber o porquê
de seu sumiço na última semana e feliz de reencontrá-lo, de vê-lo novamente.
Holanda, por sua vez, cedera ao desejo mais latente em sua alma naquele
momento, o responsável por deixá-lo com o coração palpitante e suor nas mãos.
Beijou-me ali mesmo, num beijo quente e macio, diferente. Tinha um hálito que
me consumia de prazer. O que eu temia e queria! Sim, desejava profundamente,
provar o sabor daquela boca, sentir de perto a sua respiração, próximo à minha.
Meu Deus, o que estávamos fazendo? E eu, casada. Por pior que parecesse a minha
relação com Donato, ainda o amava. Deixei-o desnorteado ao sair daquele lugar,
cenário de nossa fraqueza, de um delicioso e eterno beijo. Mal podia ouvi-lo
atrás de mim, chamando-me, pedindo-me calma. E foi na rua, enfrente à agência
que ele conseguiu segurar-me o braço.
-
Por favor, Marina...
-
Eu preciso ir. Está errado, Holanda!
-
Nós precisamos conversar.
-
Nós não podemos. Eu sou uma mulher casada. E você também.
-
Eu não agüento mais.
-
Por que, hein?
-
Porque eu estou completamente apaixonado por você, Marina. Eu acordo pensando
em você, passo o dia pensando e você, durmo pensando em você. Você não sai da
minha cabeça hora nenhuma.
Como
podia? Como havíamos deixado chegar àquele ponto? E Renato, o que significava
na vida dele? Ou melhor, ele gostava de homens ou mulheres? Voltei para casa
completamente confusa. Confusa e feliz! Como fora bom ouvir aquilo.
“Porque eu estou completamente apaixonado por
você.”
Louco,
porém maravilhoso. O que poderia ser mais inusitado? Todo o meu temor era real.
Deitei em minha cama e ri, de mim, da vida, daquela situação. Ri muito. Estava
feliz, plena. Tanta alegria, que há muito eu não experimentava.
E
então ouvi um barulho dentro do closet, como se lá alguém estivesse. Seria
Donato? Poderia ser D. Deise, arrumando as roupas. Aproximei-me.
-
Quem é?
E
quando passei pela porta que separava o outro cômodo do quarto: O menino de
meus pesadelos, segurando um bisturi nas mãos. Sorriso largo no rosto, um
sarcasmo, coisa de adulto, de dar arrepios.
-
Olá.
-
O que faz aqui, menino?
-
Estou brincando.
Corria
o bisturi pelo corpo, sem nenhum resquício de medo de se machucar.
-
Pare com isso, agora! Você pode se machucar, garoto.
-
Como você fez?
Estava
farta de tudo aquilo. Avancei sobre ele e tomei-lhe o brinquedinho. E de repente,
sem que eu soubesse como aconteceu, estava eu com os pulsos cortados, sangrando
muito. Saí pelo quarto, tropeçando, pedindo ajuda, meio desnorteada e fraca. O
meu quarto dera lugar ao quarto de mamãe, na casa onde morávamos quando era
pequena. Os lençóis todos estavam sujos de sangue e ali, vi refletida no
espelho da penteadeira, a imagem de mamãe, carregando em sua mão o mesmo
bisturi que outrora estava comigo. Ela chorava muito e pedia perdão.
-
Eu não quis fazer isto, querida, eu juro!
Queria
alcançá-la, mas ela se encontrava do outro lado do espelho. Era impossível
tocá-la. E aquilo me fez entrar em desespero.
-
Mamãe! Por favor, alguém me ajude!
-
Perdão, filha...
E
então, a imagem daquela mulher chorosa já estava atrás de mim. Voltei-me,
tentando alcançá-la. Mas não era possível, não sei por quê.
-
Por que me pede perdão?
-
Por tê-la abortado.
Abortado, a mim? Como? E vi o menino a seu
lado, como se se protegesse de mim, de sua mãe, a assassina a quem tanto temia.
Acordei
num susto só. Estava então tudo claro naquele momento. Meu primeiro impulso foi
de ligar para Holanda.
-
Preciso falar com você, com urgência. Acho que descobri o segredo desse
mistério. Agora sim, estou com a chave da minha prisão nas mãos.
CAPÍTULO 13
Fora
difícil a distância de Holanda naqueles últimos meses. Já fazia bastante tempo,
mais de um ano até, que havíamos nos falado pela última vez. Um telefonema,
através do qual quase lhe revelei minhas conclusões acerca do mistério
envolvendo meus pesadelos. Depois de nosso beijo, porém, das ameaças de Donato
a ele, sem que eu soubesse, preferimos não mais nos encontrar ou manter
qualquer contato. Na verdade, fora uma decisão mais minha que dele.
Muita
coisa então fazia sentido e eu desejava mudar minha vida. Donato e eu já
estávamos juntos há mais de sete anos. E não seria uma aventura com um homem
mal-resolvido sexualmente que nos afastaria um do outro. Decerto, estas
mudanças incluíam meu marido.
Um
ano antes, acabei por aceitar sim o trabalho oferecido pela WM, voltando à
mídia, ao mundo da moda, mesmo sem que Holanda e eu precisássemos nos
encontrar. E de certa forma, estava feliz. Pelo menos, até o resultado de meu
exame. Esperava um bebê.
O
meu sonho, desde de minha gravidez interrompida, há dez anos, pouco tempo
depois de meu casamento, finalmente se realizava. Seria mãe! Era como se a vida
estivesse me dando uma segunda chance, perdoando-me por meu ato infortúnio.
Chorei
tanto, tendo aquele exame em minhas mãos. Sim, a vida me dava uma nova
oportunidade de rever meu erro e ser feliz, ao lado de meu marido. Talvez
aquilo até o trouxesse um pouco mais para perto de mim.
Após
vencer as eleições ao senado, Donato parecia ter ficado ainda mais ocupado,
ausente de nossa vida matrimonial, como eu temia. Vez por outra, levava-me à
Brasília, em meio a certa resistência de sua parte. Na maioria do tempo,
entretanto, estávamos afastados um do outro, distantes da cumplicidade sonhada
por mim. Outras tantas vezes, eu mesma não podia lhe acompanhar, por conta de
meus trabalhos, de campanhas publicitárias, como modelo. Mas de repente, um
bebê poderia fazer com que tudo mudasse.
Ao
chegar em casa, naquela tarde fria de início de junho, após chuva intensa em
todo meu almoço com Vanessa, fui surpreendida por um silêncio mórbido. Dona
Deise parecia ter saído, talvez ido ao supermercado, mas sem deixar nenhum
aviso como costumava fazer. Então, ouvi a batida forte de uma porta de um dos
quartos ao corredor.
-
Alguém aí?
Apenas
a minha voz se fazia ouvir, além dos ventos que jogavam as cortinas de um lado
para o outro. Descuido de Dona Deise talvez, por deixar as janelas abertas, em
meio a um temporal.
Pondo
o pé no corredor, as portas dos quatro quartos começaram a abrir e fechar
freneticamente, sozinhas, como se alguém ou alguma força as provocasse naquele
movimento. E pude ouvir vozes de crianças vindas de meu quarto. Era eu, ainda
menina, brincando com o garotinho de meus pesadelos, o mesmo da bata branca,
cujo assombro já não se fazia presente há mais de um ano. Eu, criança,
mostrava-lhe minhas bonecas, e ele, por sua vez, permanecia parado, sentado na
frente daquela menina, com os braços cruzados, como se chateado por alguma
coisa.
-
Tome, pode segurar. – Disse a garotinha.
-
Eu ainda tenho medo de você. – Respondeu ele.
E
de repente, já não era mais minha imagem criança que estava ali, sentada no
meio do quarto brincando, mas eu mesma.
-
Não precisa mais temer, meu pequeno. – Afirmei sorrindo.
-
Você é má?
-
Não, não sou!
Ele,
assustado, ergueu-se, correndo para a janela.
-
Tenho medo de você!
-
Não vou mais te fazer nenhum mal.
E
ele voltou-se a mim.
-
Você ainda está com ele?
-
Ele quem?
-
O demônio.
Arrepiei-me
por completo.
-
De quem está falando?
-
Do demônio... que existe dentro de você!
-
Não, você está enganado!
O
menino baixou a cabeça e quando a ergueu, tinha os olhos totalmente negros,
banhados em sangue. Pela primeira vez, não o temi.
-
Não precisa mais ter medo de mim. – Insisti. Fui me aproximando, e ele, já
tinha seus olhos de volta. Porém, mostrava-se assustado.
-
Você me matou uma vez.
Nem
pude conter minhas lágrimas, de dor, pelo que eu tinha lhe feito.
-
Sim. Mas agora é diferente. Agora vai ser diferente. – Abracei-o finalmente,
como se aquele horror, fosse definitivamente acabar. – Juro que agora será
diferente, meu filho! – Ao abrir os olhos daquele abraço, deparei-me com uma
figura macabra, de Donato, com os mesmos olhos negros transbordando em sangue
do menino de outrora. Acordei com meu próprio grito, e dona Deise procurando me
ajudar. Segurava meu exame de gravidez nas mãos, comprimindo-o contra o peito,
como se protegesse minha cria. – Agora vai ser diferente, dona Deise! Eu juro!
Nossa
empregada nem imaginava do que eu falava.
Descobri
estar grávida pouco depois de meu casamento com Donato, logo que voltamos para
o Brasil. Ingenuamente partilhei de minha alegria com meu marido, cuja reação
me fez entrar em desespero. Dizia ele, transtornado, não ter planejado aquilo,
nem nunca ter pensado na possibilidade de ser pai, exigindo que eu o tirasse. Seria
ele, Donato, ou aquela criança. Optei por meu casamento!
Então,
passei a ser atormentada por aqueles pesadelos, sendo eu taxada de assassina,
dia após dia, por um garotinho de aparência macabra. Era meu filho, minha
consciência, procurando-me para prestar contas.
Larguei
tudo o que eu amava, até mesmo o sonho da maternidade, dando fim à vida de meu
próprio filho. E tudo para quê? Para ficar com Donato, numa relação mentirosa,
na qual nunca realmente fui sua mulher em cumplicidade e amor.
Aquele
sonho talvez fosse um aviso. O último aviso.
Donato
jamais aceitaria aquele gravidez, a ideia de ser pai. Como não aceitara no
passado. Certamente exigiria um novo aborto. E isso, eu nunca mais faria.
Aquela criança com certeza nasceria, nem que fosse necessário eu protegê-lo
como minha própria vida.
“O
demônio.”
Meu
Deus, o demônio era ele, meu marido, Donato Pessoa. Era por ele que eu vivia
aquela vida de pesadelos, de horror.
E
quanto ao nosso amor? Já não existia mais, nenhum resquício, nada! Sobrara apenas
palavras gentis e gestos formais. A cumplicidade tão sonhada, eu mesma
conseguia reconhecê-la em seu relacionamento com Luísa. Embora não soubesse do
que realmente estava por trás daquela parceria profissional. Ou não quisesse
enxergar o que esteve diante de meus olhos durante todos os anos em que
estivemos casados. Donato Pessoa seria dali para frente parte de meu passado. E
foi o que lhe disse, naquele mesmo dia, num dos poucos jantares que tivemos no
último ano.
-
Como? – O vi quase engasgar com um pedaço de batata recheada. A mim, restava
enfrentá-lo. Seria o fim de tudo.
-
O que você ouviu, Donato. Não há mais sentido em nossa vida comum. – Tomei um
gole de vinho e prossegui: - Vivemos como dois estranhos dentro dessa casa,
quando conseguimos nos encontrar é claro. Sua vida tem sido o senado, as
reuniões políticas, as tramas dentro da RTN, nada mais.
-
Querida, eu sei que tenho estado um pouco ausente...
-
Isso é eufemismo, Donato. Quanto tempo faz que estamos tentando? Passamos o
último ano vivendo o empirismo de uma relação fracassada.
-
Você também tem estado ausente, longe de seu papel enquanto esposa. – Perdia a
paciência.
-
Sabe que você tem razão? E o mais interessante, é que eu não tinha me dado
conta disso, do quanto fui me libertando da doença por você.
-
Como assim doença? – Ele sorriu, desconcertado, passando o guardanapo na boca,
após tomar um gole de vinho.
-
Abneguei de tudo por sua causa, por causa do sonho de viver este casamento.
Isso não é saudável, é doentio. Mas estou farta! – Joguei meu guardanapo encima
da mesa. – É hora de acabarmos com isso, Donato. Chega de testes. Agora quero
viver!
A
única coisa que me vinha era meu filho, e que precisava protegê-lo. Parecia
irônico, protegê-lo do próprio pai! Mas era real. Verdadeiramente, não estava
certa de meus sentimentos ou da mudança deles acerca de meu marido. Era,
contudo, a única saída para preservar a vida de meu filho.
-
Essa história não acaba aqui, Marina.
-
Já acabou, Donato. – Levantei, indo para a sala, forçando-o a vir atrás de mim.
-
Não, não acabou! – Segurou-me pelo braço, tomando-me por um beijo. Nada! Não
consegui sentir nada. O mesmo ardor do passado, o fogo o qual me consumia ao
ser tocada por Donato. Seu beijo não passava de uma boca molhada de saliva,
invadindo a minha. Não conseguia reconhecer minha paixão naqueles traços tão
admirados por mim em outro momento de minha vida. Pela primeira vez conseguia
enxergar as marcas do tempo naquele rosto bonito, no charmoso furinho em seu
queixo, então exagerado, nos lábios os quais não traziam mais o mesmo
sabor.
“Vou
amá-lo eternamente!”
Lembrei
de minhas próprias palavras, no início de nosso casamento. E a única coisa que
me importava naquele instante era meu filho. Toquei em meus lábios, como se os
limpasse após o beijo.
-
Sinto muito.
Saí
dali, deixando-o em sua perplexidade. E fui novamente tomada por ele, logo que
entrei no quarto.
-
Você não vai sair de minha vida dessa maneira!
-
Nosso casamento já não existe mais. Você não consegue enxergar?
-
Não, não consigo! E não aceito essa situação.
-
Você não me ama mais.
-
Fale por você. – Segurou-me firmemente, fitando-me os olhos e perguntou: - Você
não me ama mais? – Não sabia. Eu não podia responder aquilo, não naquele momento.
E ele completou: - Enquanto não conseguir responder isto, olhando em meus
olhos, continuaremos casados. Deixou-me com meus pensamentos, minhas dúvidas,
meus medos.
No
fundo, meu marido temia o que eu faria dali para frente. Até mesmo por não mais
reconhecer em mim a submissão, o medo, a complacência de outrora. Eu já dizia o
que pensava, o que sentia, de forma firme e destemida. O que o levou a procurar
pelo velho e fiel amigo, Pedro Lucena. Naquelas horas, seria a única pessoa com
quem conseguiria desabafar, falar de sua insegurança.
-
São dez anos de casamento, Pedro. Não se acaba assim, de uma hora para outra.
Ela me ama, sempre me amou. Marina é a “minha mulher”.
-
Ela é a mulher com quem você escolheu partilhar sua vida, não sua propriedade.
Foi isso que você não conseguiu entender ainda, e é isso que tem feito vocês se
afastarem. – Disse-lhe Pedro, entregando-lhe uma dose de uísque.
-
Errado, Pedro. Marina me pertence.
-
É este desejo de pertença que você tem das coisas, das pessoas, que te afastaram
e te afastam cada vez mais da sua própria felicidade.
-
Não, foi ele que me fez chegar onde cheguei.
-
E as suas relações? Hoje, quem gosta de você, Donato?
-
Não importa. Eu tenho tudo o que eu sempre quis. E vou conseguir ainda mais.
Porra, eu sou um puta de um executivo, um cara rico, tenho uma mulher linda,
e...
-
E o que mais? O que mais você tem, Donato?
-
Não preciso de mais nada.
-
Você perdeu sua família, ficou sem amigos, está prestes a perder a pessoa que
talvez mais tenha te amado até hoje. E para quê? Para ser um senador? Para ser
um grande executivo? Para ser uma pessoa temida e não respeitada? Para ser um
homem odiado? Para se tornar uma pessoa sozinha?
Donato
pousou o copo de uísque na mezinha de centro do apartamento de Pedro, levantando-se
e deu as costas. Doía ouvir tudo aquilo, por mais que quisesse não se importar.
E ainda ousou afirmar:
-
Eu não preciso de ninguém.
-
Repita isso para você mil vezes, para vê se tranquiliza mais seu coração. O que
você mais precisa, Donato, você nunca terá se persistir no caminho pelo qual
optou trilhar. As coisas, o dinheiro, um bom cargo, os aplausos, o poder, tudo
isso pode trazer alegrias sim, mas uma alegria que se esvai rapidamente, que
não tem consistência, que se encerra nela mesma logo que conquistamos o que
lutávamos para conquistar. É algo de momento. Pronto, nada mais! E assim, você
tem levado sua vida, numa colcha de retalhos, pegando um pedacinho de alegria
aqui, outro acolá. Sofrendo com o olhar de desdém das pessoas, as mesmas que ovacionam
seu nome pela frente, mas lhe odeiam em sua alma. Você é feliz?
-
Sou.
-
O que é a felicidade para você?
-
A minha vida, o que eu consegui.
-
Só isso?
-
Não. Falta ainda. Eu quero mais.
-
Você sempre vai querer mais. É assim que funciona. Acorda, Donato! Você quer
perder o amor da Marina, assim como perdeu de todas as pessoas que te amavam
até então? – E meu marido se viu encurralado, com os olhos transbordando em
lágrimas. Pedro chegou mais perto e prosseguiu: - As coisas podem lhe ser
tiradas, o poder pode sumir, as situações já passaram, sem que você pudesse
segurá-las, pois realmente não pode, a RTN pode falir, você pode ficar sem um
tostão numa jogada errada de investimentos, seu mandato pode ser caçado. E
então o que sobraria?
Donato
voltou-se a Pedro, vazio de respostas, como sua vida.
-
Sobraria a minha força de seguir adiante.
-
E conquistar tudo novamente?
-
Sim. E por que não?
-
E assim, passaria sua vida inteira?
-
Não necessariamente. Existem tantas pessoas aí que conseguiram tudo isso e
morreram ricas, podres de ricas.
-
Resta saber se eram pessoas felizes. Eu sou um cara que tem muito do que você
passou a vida inteira lutando para conseguir. Mas se eu perder essas coisas, eu
vou continuar feliz. Porque o que eu tenho de mais valioso, ninguém jamais vai
conseguir me tirar. Isso eu carrego comigo por toda a vida. Quanto a você,
permanecendo neste caminho, será sempre um arremedo da minha presença. Donato,
definitivamente não é o cargo que temos ou a quantidade de dígitos em nossa
conta bancária que garante o respeito das pessoas e a nossa felicidade. Eu
arrisco dizer que você é uma pessoa infeliz sim!
-
Mentira! Eu não sou infeliz. Eu não sou infeliz!
-
É o vazio que você nutre dentro de você que te faz seco, amargo, infeliz.
-
Eu não preciso de ninguém, a não ser do meu dinheiro para ser feliz.
-
E quanto a inveja que você sempre sentiu quando via as pessoas me admirando,
construindo relações de amizade, de companheirismo, de respeito comigo e não
com você? Isso você nunca vai conseguir ter, conquistar nesse caminho. Vai
passar a vida inteira tentando, frustrado, infeliz. Tentando aumentar sua conta
bancária para tapar esse rombo na sua alma.
“Aumentar a conta bancária pra tapar um
rombo na alma.”
Aquela frase ressoou por dias na cabeça
de meu marido. Sabia que tudo o que ouvira de Pedro Lucena haviam sido palavras
de afeto e cuidado, em nome de uma velha amizade. E de algum modo desejava
seguir seu conselho, por temer também me perder.
CAPÍTULO 14
A
mim restava o medo daquele homem e do que poderia ele fazer contra meu filho,
caso descobrisse minha gravidez, como fizera anos antes.
Com
os momentos de fragilidade vinha também o desejo da presença firme e calorosa
de Holanda. Certamente, ele saberia o que dizer, o que fazer. Como eu queria
encontrá-lo ali! Pensei em lhe ligar várias vezes. Mas o que lhe diria, depois
de tanto tempo? Depois de lhe descartar, de abrir mão de sua amizade? Não
poderia fazer.
E
foi no estacionamento da WM, depois de quase batermos nossos carros um no
outro, onde Holanda e eu nos encontramos. Eu havia ido lá para pegar o projeto
de um novo comercial, o qual faria, a convite de um dos diretores da casa. De
certo, sob a orientação de Holanda. Embora não tivéssemos mais nenhum contato.
Ele, parecia estar chegando. Por pouco não nos acidentamos. Holanda saiu
correndo do carro, para se certificar que nada demais me acontecera.
-
Como você está?
-
Estou bem. Não se preocupe. – O susto maior era de lhe ver.
-
Me desculpe, por favor, Marina!
-
Nada. A culpa foi minha.
-
Não, foi minha.
-
Eu que ia saindo sem prestar atenção.
-
Não, eu que vinha falando ao celular.
-
Ok, seu infrator. – Brinquei.
-
E você, dirigindo desatenta? – Sorriu.
E
nós dois caímos numa gargalhada.
-
Que saudade! – Paramos de rir com aquele desabafo dele.
-
Eu também. – Confessei.
Dali
a pouco estávamos entrando em seu apartamento. Eu me encontrava um pouco
envergonhada. Mas precisávamos realmente conversar. Não se põe fim a uma
amizade tão forte daquele modo.
Holanda
não perdera o sorriso maroto, o jeito inocente e ao mesmo tempo presente e
cuidadoso, peculiar à sua personalidade determinada. Eu o via muitas vezes como
um menino-homem. Inteligente, brincalhão e consciente de sua expressão.
-
Você tem encontrado o Renato? – Não sabia bem por onde começar. E por que não
por nossos entraves?
-
De vez em quando. – Respondeu prontamente, arregalando os olhos, de forma
lúdica, com um sorriso apertado, como se já me dissesse de muitos problemas
naqueles ditos encontros os quais confirmava terem acontecido.
-
O que ele achou do seu apartamento novo? - Tentava amenizar, afim de não
invadi-lo ou fugir de uma intimidade que e não sabia se era realmente bom
estabelecer.
-
Chorou muito. Não compreende por que eu saí de lá.
Pronto!
A intimidade fora estabelecida.
-
Sei como é. Mas já tem aceitado mais?
-
Nada. Sempre que nos encontramos, a mesma conversa. Ele não me esquece. Não sei
mais o que posso fazer pra deixá-lo bem.
-
Mas...
-
O quê?
-
Tem acontecido alguma coisa entre vocês?
Ele
fez um bico com os lábios, olhando rapidamente para o lado, como se tivesse
pensado em não responder a verdade.
-
Às vezes. – Holanda confessava para mim naquele momento que ainda tinha
relações homossexuais. E aquilo me doía profundamente. Mas seria diferente se
me dissesse estar saindo com alguma mulher?
-
Por isso então ele não lhe esquece. – Procurei disfarçar seu incômodo. Nada
tinha a ver com aquilo. Senti raiva e vontade de ir embora. Se reclamava da
insistência do outro, por que então alimentava seus sentimentos?
-
Não é tão simples, Marina. Quando se trata realmente da vida da gente esses
manuais de “como fazer” não se encaixam. Você deve saber melhor que ninguém.
Nem
era de mim que estávamos falando. Persisti então no assunto.
-
Então ainda gosta dele?
-
Como amigo. Uma pessoa que amo.
-
E por que ainda se permite?
-
Sei lá. Carência também, pena. Não sei bem.
-
Assim ele nunca vai te esquecer.
-
Talvez você tenha razão. A mãezinha diz a mesma coisa. E eu me sinto péssimo
quando acontece. Sinto-me um canalha.
-
E é.
-
Puxa! Obrigado. É sempre bom saber que temos amigos com quem podemos contar.
-
De nada. – E rimos novamente.
Na
mezinha ao lado do sofá, junto com um abajur havia um porta-retrato com uma
fotografia nossa, abraçados. Lembrei-me do dia em que tiramos, num passeio de
barco. Estávamos tão próximos. E agora tão distantes. Talvez tivesse sido
melhor não tê-lo encontrado, não saber de sua intimidade com Renato Brandão.
Assim, pelo menos, preservaria a magia.
-
Diferente do que você acha, esse encontro pra mim está sendo muito importante,
Marina. - Parecia ter lido meus pensamentos. – Eu queria muito que isso
acontecesse.
-
Eu estou muito feliz no meu casamento. – Menti.
-
É mesmo? Que bom. Fico realmente feliz de lhe ver bem. Acredite, Marina. Nunca
desejei que sofresse por estarmos separados.
-
E você? Está feliz?
-
Não.
Como
eu era egoísta. Senti-me bem de ouvir aquilo.
-
E por quê?
Ele
hesitou um pouco, voltando-se a mim, após abrir a porta que dava para a
varanda. Aproximou-se, sentando bem perto.
-
Por sua causa.
-
Como?
Eu
sabia como. Queria apenas ouvir novamente.
-
Eu não estou feliz, por estar longe de você.
Como
era bom ouvir aquilo!
-
Mas e o Renato? Agora você me confunde.
-
Sabe o que sinto por ele, Marina. Sempre fui claro com você. - Isso era
verdade. – Foi difícil para mim ouvir de você que não queria mais me ver.
-
Foi preciso.
-
Eu sei. Mas isso não tirou o peso da saudade, da falta que você me fez.
-
Não via outro modo. O Donato e eu estávamos começando um novo momento em nosso
casamento. E nunca nós conseguiríamos se você e eu tivéssemos continuado nossa
relação.
-
Eu compreendo. Mas nunca aceitei, apesar de respeitar. Não existe um botão de
liga e desliga, sabe? Portanto, dói. Você está realmente feliz?
Não.
Não estava feliz. Mas sabia que não seria aquele o momento de confessar.
Lembrei-me de meu filho. Estava grávida. Levantei-me, tomei um pouco de ar
diante da porta aberta da varanda.
-
Eu estou grávida, Holanda.
Era
mais fácil falar de costas, sem ter que enfrentá-lo. Assim não precisava
encarar uma cara de decepção, de sofrimento, ou coisa parecida. Primeiramente
houve um momento de silêncio. Era aquilo que eu desejava evitar. Depois ele
falou.
-
E Donato, como reagiu?
-
Bem. Quer dizer, feliz. Está feliz. – Menti mais uma vez.
-
Que bom, Marina.
-
É mentira, Holanda. – Voltei-me finalmente a ele. – Donato não sabe.
Necessitava
contar a alguém. Holanda seria a melhor pessoa. Falei dos pesadelos, das minhas
últimas conclusões. Que o garotinho na verdade era meu filho o qual abortei há dez
anos. E que temia a descoberta de meu marido daquela nova gravidez. E Holanda
simplesmente me abraçou. Que bom senti-lo novamente, sua presença, seu apoio,
sua amizade, seu amor.
Holanda
e eu passamos a nos falar diariamente, por telefone ou pessoalmente, sem que
meu marido soubesse. Ensaiei algumas vezes em lhe contar. Mas o que eu vinha
sentindo, não conseguiria esconder, caso ele soubesse daquela reaproximação.
A
necessidade que eu sentia não era somente da presença, do apoio moral e amigo
de Holanda, mas de seu carinho, seu toque, seus abraços, seu calor. Era muito
bom senti-lo perto de mim. Um desejo velado em abraços inocentes.
Naquelas
semanas que se seguiram vivi o medo de ter minha gravidez descoberta por
Donato. Meu próprio corpo não vinha colaborando, causando-me enjôos
permanentes. Qualquer comida que não fosse suco ou fruta, embrulhava-me o
estômago. O que provocara, evidentemente, as desconfianças por parte de meu
marido. Chegando a ele a me perguntar diretamente após um almoço o qual
oferecemos a um deputado de seu partido que precisara vir a Fortaleza por uns
dias.
“Marina,
você está grávida?”
Gelei
ao ouvir aquela pergunta.
E
como os homens são pouco perceptíveis em relação às mulheres! Se dependesse
realmente de meu marido, creio que chegaria a entrar em trabalho de parto e ele
ainda pensando tratar-se de minha saúde fragilizada por conta de meus
pesadelos, dos quais, segundo ele, eu preferia fugir a buscar uma cura. Mesmo
em se tratando de Donato Pessoa. Tão observador. Fora Luísa quem lhe chamara
atenção acerca de meus frequentes enjôos e ameaças de desmaios. Ela própria
fizera antes daquele episódio um comentário sobre como eu havia engordado nos
últimos tempos. Já se encontrava desconfiada de que podia ser uma gravidez.
-
Nada! Que ideia, Donato... – Disfarcei, quando na verdade me encontrava chocada
com aquela pergunta. Ele fora certeiro.
-
Pois de fato precisamos procurar um médico, minha querida. Vira e mexe você tem
esses piripaques. – Disse ele, com um olhar carregado de dúvidas.
Pelo
menos daquela eu havia me livrado. Por Holanda eu já devia ter contato a meu
marido há bastante tempo, enfrentando a assombração de sua reação negativa.
Afinal, não se tratava mais de uma garotinha ingênua e apaixonada, como na época
de nosso casamento, mas de uma mulher determinada à maternidade. Contra isso,
certamente Donato Pessoa não poderia mais nada.
Ensaiei
diversas vezes a cena de revelação da verdade a meu marido. Deixava-me,
contudo, ser sucumbida pelo medo. E se ele tentasse contra aquela vida
indefesa, mesmo contra a minha vontade? Testemunhando as manobras políticas, a
sujeira que envolvia meu marido em seus conchavos cujo objetivo de conquistar,
transformava-o num homem sem caráter, levava-me a temer seus métodos para
conseguir o que desejava.
Deste
modo, caso Donato não se sentisse satisfeito em relação a minha gravidez, e
certamente não se sentiria, poderia ele dar-lhe um fim, como da outra vez,
mesmo contra minha vontade, mesmo com o apoio incondicional de Holanda.
E
pior. Sempre que eu pensava em contar a Donato do filho que eu esperava e não
conseguia, por falta de coragem, nutria a sensação da covardia, dando razão ao
menino dos meus sonhos. Assim, eu também era culpada e não vítima, como
preferia pensar muitas vezes.
O
fato é que minha barriga já começava a se fazer perceber, e eu necessitava de
um acompanhamento médico. Aos quatro meses de gestação, não havia dado início
ainda ao pré-natal. E meus enjôos pareciam piorar a cada dia, preocupando a
mim, a Holanda, e a todos a minha volta, embora não soubessem do que se
tratava, ou pelo menos fingiam não saber, como dona Deise. Ela sempre ao meu
lado, cuidando-me com comidas diferentes e leves, sem permitir que eu tomasse
qualquer um dos remédios sugeridos por Luísa. Sentia nela uma proteção. E certa
vez deixara escapar que no “estado no qual eu me encontrava” precisava eu de um
médico. Dissera aquilo de uma forma tão cautelosa e preocupada, que despertou
em mim a coragem de marcar meu primeiro exame. Queria que Holanda me
acompanhasse.
Temia
também que houvesse algo de errado com o bebê. Vinha sendo uma gravidez tão
sofrida, por conta de meus enjôos, que chegava a acreditar na possibilidade de
alguma doença acompanhando aquela criança. Talvez por isso eu tenha resistido
tanto em procurar um médico, mesmo escondido de meu marido.
“É
um menino e muito saudável.”
Ouvir
aquela afirmativa do médico, sorrindo para mim, enquanto visualizava as imagens
distorcidas na tela, projetadas de meu ventre, era como um bálsamo. Holanda
segurava minha mão com bastante força. Estava ele também emocionado, por mim,
pelo medo que eu senti durante aquelas últimos meses, por me ver bem e
aliviada.
Outro
filho! Não vinha aquela criança tomar o lugar do bebê o qual eu não havia
deixado nascer anos antes, mas era como se a própria vida me ajudasse a reparar
meu crime, dando-me uma nova chance de ser mãe. Um menino saudável, como
dissera o médico. Sim, a vida me abria uma nova porta.
Chegara
também a hora de contar tudo a Donato. E mais, de pôr fim ao nosso casamento.
Já não éramos mais felizes. A mentira vinha temperando uma relação que havia
começado vislumbrando um casamento dos sonhos. Um casamento que nunca existira
e jamais se faria presente.
Ao
sairmos da sala do médico, Holanda e eu, fomos surpreendidos pela presença
questionadora de Donato, logo na recepção.
-
Donato? – Meu coração parecia querer sair de meu peito.
-
O que faz aqui, Marina?
-
Eu... – Não consegui pronunciar uma palavra.
-
E esse homem com você? – Referia-se a Holanda ao meu lado.
Podia
ver o constrangimento de Holanda em seus olhos. Donato parecia furioso. A fúria
de um homem traído.
-
Nós precisamos conversar. – Disse eu, aproximando-me de meu marido, como se
para garantir que não fizesse nada contra meu amigo.
-
Conversar? Conversar o quê? O que está acontecendo, Marina?
-
Vamos sair daqui, por favor, Donato.
-
Marina, você tem certeza que vai ficar bem com ele? – Holanda não poderia ter
feito aquela pergunta. Provocara ainda mais a fúria de meu marido. Nunca antes
o vira daquela forma, com tanta raiva, sem controle, com um olhar que me dava
medo.
-
Então a mocinha está preocupada de como vai ficar a “minha mulher”, comigo? –
Perguntara Donato, desdenhando, e já se aproximando mais de Holanda, embora eu
procurasse impedi-lo, com meu próprio corpo.
-
Não é isso, Donato. Vamos para casa, por favor. A gente precisa conversar, mas
em casa. Sem ninguém, só nós. Aqui é um lugar público.
-
Não quer testemunhas?
-
Por favor, Donato!
-
Marina, talvez não seja boa ideia você ir. – Holanda procurara intervir mais
uma vez, tentando me proteger.
-
Quem pensa que é, seu vagabundo? Seu Baitola!
Vi
meu marido sacar de uma arma e apontá-la para Holanda.
-
Donato, Não!
Olhei
para os lados, e ninguém. A recepcionista parecia ter saído. Estávamos somente
nós ali. Meu marido mirando uma arma para meu melhor amigo e eu tentando
impedi-lo.
-
É assim que você resolve as coisas? Agora é a hora de eu implorar por minha
vida? – Holanda ironizava, com um sorriso desdenhoso.
-
Pare, Holanda! – Pedi a ele.
-
Desgraçado! – Gritou meu marido.
Donato
puxara o gatilho antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Cheguei a
visualizar a fumaça no ato do disparo, bem diante de mim. Tudo tão rápido. Mal
vi o tiro e Holanda já estava caído. A bala parecia ter lhe atingido o coração.
Uma
dormência tomara conta de mim. Algo me dizia não adiantar nenhuma esperança. Parecia
ter ensurdecido com o tiro. Holanda morrera por minha causa, por minha
covardia. Debrucei-me então por sobre seu corpo. A mim, naquele momento,
restava somente o choro. E ao erguer a cabeça, tive a imagem do garotinho de
bata, bem na minha frente. Ele também chorava. E trazia um terror em seu olhar.
-
Ele morreu? – Perguntou a garotinho, aos prantos.
Fiz
que sim com a cabeça.
-
Como eu? – Complementou ele.
Olhei
assustada. Estava eu enlouquecendo?
Acordei
pelo meu próprio grito, ainda no consultório de meu ginecologista. Parecia ter
adormecido por alguns instantes. E graças a Deus fora apenas um pesadelo!
Holanda continuava ao meu lado, segurando minha mão. Parecia apreensivo, por
conta de meu grito, meu nervosismo.
-
Calma, Marina. Está tudo bem. – Disse-me ele de forma confortante.
Mal
sabia o porquê daquele grito. Mais do que nunca, precisava acabar com aquele
pesadelo de uma vez por todas. O pesadelo de minha própria vida.
E
mais uma vez, ao sairmos do consultório do médico, deparamo-nos com Donato, na
recepção.
Meu
Deus, será que a cena se repetiria?
CAPÍTULO 15
Donato
retirou o paletó, jogando-o na cama. Afrouxou o nó da gravata, dando um grande
suspiro. Depois, aproximou-se da janela, como que para tomar ar puro.E eu,
sentada numa poltrona de frente para meu marido, desde que entrei naquele
quarto. Um ambiente no qual eu já não reconhecia enquanto aconchego, enquanto proteção.
Tudo ali cheirava a algo já não-desejado. Era realmente o fim de nosso
casamento.
-
Tudo agora é diferente, Donato.
-
Eu sei.
Vi
que ele falava de nosso filho. Era óbvio que meu marido havia descoberto. Na
verdade, Luísa descobrira a consulta e fizera com que o amante ficasse sabendo.
Ela esperava que aquela gravidez pudesse acabar de uma vez por todas com nosso
casamento. Afinal, passara a vida inteira esperando uma chance de ser amada por
Donato, depois de tantos anos de dedicação, lealdade e afeto. Para ela, sempre
fora injusta aquela minha união com seu grande amor. Era Luísa realmente a
senhora Donato Pessoa. Não eu, uma fraca, segundo ela, mimada e louca.
Referia-se a mim, quando desabafava com Flávio ou com amiga Lorena, como a
“coisinha doida”. Seria então sua grande chance de se casar com Donato.
-
Eu tô grávida, Donato. – Pensei antes de revelar a verdade. Mas já era hora.
-
Desde quando? – Perguntou ele ainda de costas.
-
Quatro meses.
-
Se eu não tivesse ido àquela clínica, continuaria sem saber?
-
Não. Hoje eu falaria de qualquer forma.
-
E por quê? Cansou de mentir ou havia acabado o repertório de desculpas?
-
As duas coisas. Mas também porque já era hora de você saber.
-
E o que te dá o direito de mentir, esconder uma coisa dessas até a hora que
“você” julga ser a hora certa de contar?
Ele
tinha razão de certa forma. Mas e o meu medo? E o aborto obrigado por ele há
sete anos. Não! Donato não tinha o direito de me cobrar nada. E foi o que eu
lhe disse. Só então ele se voltou a mim com os olhos transbordando em lágrimas.
-
O que você acha que eu sou? – Perguntou Donato, quase gritando.
-
Eu tenho medo de você. – Baixei a cabeça, procurando fugir daquele olhar
acusador, furioso. O choro já me entalava o peito.
-
Eu não sou esse monstro que, provavelmente, você pintou pra esse rapaz, pra ele
estar assumindo um papel que deveria ser meu.
Voltei-me
a ele então. Era hora de enfrentá-lo.
-
O que realmente te preocupa, Donato? A distância entre nós ou o medo de perder
o que você pensa que é “seu” para o Holanda?
-
Você é “minha” mulher! – Partiu para mim, como se fosse me agredir.
-
Mas não sua propriedade. – Retruquei da mesma forma.
Donato
encontrava-se transtornado.
-
O que é isso agora? A revolta do proletariado?
-
É assim que você me considera? Eu não sou uma empregada sua, Donato Pessoa. –
Levantei, tratando-o de igual para igual. – Também já não sou mais nenhuma
mocinha ingênua. Chega de me tratar como tal!
-
Então é isso que esse viado vem te ensinando?
-
Eu sei que você me tem em muito pouco, nem muito menos considera qualquer grau
de inteligência ou pensamento próprio de minha parte. Mas acredite, Donato,
Holanda não tem na da a ver com isso. O sofrimento, peculiar a esse casamento
mentiroso em que nós estamos mergulhados nos últimos sete anos, me fez enxergar
o verme no qual você tentava me transformar. Chega! Entendeu? Chega!
-
Pelo visto o verme então sofreu uma mutação?
-
Sofreu. Exposta a tanta radioatividade ao seu lado, qual verme não sofreria?
-
Eu não sei o que esse filho da puta fez com você. Mas não vou deixar que acabe
com nosso casamento. Não vou!
-
Acorda, Donato! Nosso casamento acabou há muito tempo. O que nos resta são
escombros, sujeira, mal-cheiro. Nada mais que isso. Agora tudo é diferente.
-
Eu quero esse filho!
-
O quê?
-
Eu quero esse filho, Marina.
Nem
podia acreditar no que estava ouvindo. Escondi minha gravidez de meu marido
durante quatro meses, por puro medo de sua reação. E de repente, ele me dizia
também querer aquele filho.
Donato
caiu de joelhos diante de mim, acariciando minha barriga. Senti medo e ao mesmo
tempo, um alívio. Não podia estar mentindo. Não diante de uma situação
daquelas. Ele não era tão ator, tão mentiroso, tão vil a esse ponto.
-
Eu quero esse filho. Ele é meu. Ele é meu. – Repetia, sem que eu mesma não
acreditasse.
E
a separação, que eu tanto queria? Como seria dali para frente? Se o motivo era
a reação de Donato, pronto. Aquele medo não fazia mais nenhum sentido. Ele
também queria aquela criança. E por fim, tive pena daquele homem. Parecia
frágil diante de mim, agarrado com minha barriga.
E
nossos sonhos ao nos casar? Foram dez anos de uma convivência difícil, de
muitas frustrações. Talvez pudéssemos consertar aquilo. Não sei. Um filho muda
tudo. Donato mesmo poderia mudar.
Pouco
depois do banho, meu marido me perguntara acerca do tipo de relação que eu
vinha mantendo com Holanda.
“Somos
grande amigos. Nada mais que isso.”
Resposta mentirosa aquela. Holanda e eu
éramos mais que amigos, embora nada nunca houvesse ocorrido. Mas não por falta
de vontade, das duas partes. No fundo, o medo de Donato residia apenas em nível
de idéias contra ele, as quais o rapaz pudesse nutrir. Apoiava-se na crença da
homossexualidade do outro, a fim de ficar mais tranquilo.
Dias
mais tarde meu marido chegou em casa e dissera ter sido procurado por Holanda,
e que o mesmo havia revelado sua paixão por mim, deixando claro que lutaria por
meu amor. E mais, que seria capaz de tudo para ficar comigo e me proteger. Ele
mesmo me confirmara o encontro em seguida, apenas silenciou quando confrontado
por mim acerca de suas afirmações a Donato. Seria de fato verdade aquilo?
Cheguei a cogitar a possibilidade de silenciar por sentir-se ofendido com meus
questionamentos.
O
que Holanda queria com aquilo afinal? Acabar com meu casamento? Preferi não
mais atender seus telefonemas. Como o próprio Donato havia me colocado, talvez
eu tivesse, mesmo sem querer, alimentando aquela paixão. Se queríamos realmente
ficar juntos como uma família, precisávamos cortar qualquer mal que pusesse em
risco nossa união.
Mas
para quê aquilo? Não havia necessidade. O que conseguira? Acabar com nossa
amizade? Agora Donato tinha um motivo plausível para exigir nosso afastamento.
E nem mesmo o fizera, para minha surpresa. Apenas me abrira os olhos para o
perigo do sentimento que se formava no coação daquele pobre rapaz, segundo ele
mesmo.
Cada
um luta com as armas que tem. E Donato fora certeiro em seu método.
Passei
a fugir de Holanda, afim de evitar mais sofrimentos e que ele mesmo se
machucasse. Embora eu mesma sofresse por nosso afastamento, não era justo, não
com ele, tão amigo, tão leal. Não merecia se magoar por minha causa. Quem sabe
num outro momento nós pudéssemos restabelecer aquela amizade. E foi o que lhe
disse, logo que tive oportunidade, numa grande festa na casa de Leonardo
Gondim.
Naquela
mesma noite, cheguei em casa e vi um carrinho de bebê, na sala. Donato ficara
estacionando o carro na garagem enquanto eu subi, tomada de muita dor de
cabeça.
Aquele
carrinho talvez fosse um presente de meu marido. E quando olhei para dentro, pus-me diante do
terror.
Uma
criança morta, esfaqueada dentro do carrinho!
-
Nããããããããããããããããããão!
Assombrei-me
com meu próprio grito.
Era
meu filho, recém-nascido. O pior havia acontecido!
Do
outro lado da sala, o menino de bata branca, sujo de sangue, com uma faca em
punho. Em seus olhos, um ódio, uma dor.
-
Você o matou!
-
Eu não matei ninguém!
-
Matou! – Contestou com uma voz grave, de adulto, diferente do timbre infantil.
No rosto, um sorriso dissimulado. Não era de criança aquele sorriso. – Você é
uma assassina!
-
Não fui eu, eu juro!
-
E o que é isso? – Perguntou apontando com a cabeça para minhas mãos. Estavam
sujas de sangue, do sangue de meu filho. A faca estava caída aos meus pés.
Meu
Deus, tudo tão macabro! E Donato que não chegava.
-
Por que ainda me atormenta? – Aproveitar para perguntar. Ora, não havia mais
necessidade. O recado estava dado. Eu já sabia tratar-se de meu filho, o aborto
de sete anos antes. Por que aquela criança persistia em me atormentar?
-
É você que me atormenta.
-
Não, não sou eu! Você entra nos meus sonhos, faz da minha vida um inferno.
-
O inferno é seu, sua assassina.
-
Quem é você então?
-
O demônio que você não conseguiu matar.
-
Do que você está falando?
-
De você. Do seu demônio.
-
De quem? Do Donato? É ele o demônio? É?
-
Não.
-
Quem é então?
-
Você!
O
menino correu em direção aos quartos.
Precisava
eu obter mais respostas. E todas as
portas, trancadas! Corri então para a janela, ao fundo do corredor. As cortinas
dançavam ao som dos fortes ventos, vindos da Beira-Mar. Era a única saída.
Pulei! Caí num velho colchão encharcado e sangue. Não estava na Av. Beira-Mar,
mas num cubículo escuro, com cheiro de mofo. Ao fundo, uma só porta, de onde
vinha o som de uma torneira pingando. E na cuba da torneira, pedaços de órgãos.
E sentado, embaixo do velho chuveiro, deixando vazar sua água podre, o menino
de bata, esfaqueado-se freneticamente, sorrindo para mim.
Acordei
transtornada. Donato não estava a meu lado. Tratei de levantar e procurar por
ele. Encontrava-me com medo, precisando de apoio. Procurei na casa inteira e
nada. Para onde afinal teria ido meu marido, no meio da noite? D. Deise tentava
me acalmar, mas a ausência de Donato também me preocupava. Somente ele então me
acalmaria os nervos. O único lugar que restava naquele imenso apartamento, era
o quarto de Luísa. Lá eu não o havia procurado ainda. Lembrei-me dos venenos de
Maria Eugênia acerca daquela relação de meu marido e sua secretária, dos
comentários de muitos que havia sido por causa de um suposto romance dos dois o
término do casamento de meu marido com sua mina de ouro, da vez em que
flagrei-os no escritório, transando. Teria sido realmente um sonho aquele dia?
Entrei no escritório quando estavam lá, depois saí, voltando somente depois de
tempo suficiente para que terminassem com aquilo. Não parecia um sonho, embora
estivesse transtornada por conta de um de meus pesadelos. Sonho não era. No
máximo uma alucinação, pois estava eu bem acordada, lembrava então. Alucinação?
Estranho! Vivi atormentada por aqueles pesadelos nos últimos sete anos. Mas
nunca sofri de nenhuma alucinação. Nada demais me acontecia quando estava
acordada. Somente aquela vez.
Decidi
invadir o quarto de Luísa para que não desse tempo se fosse realmente verdade o
que pairava em minha cabeça naquele momento. E foi o que eu fiz, encontrando-a
dormindo à luz do abajur.
-
O que é isso? – Perguntou ela assustada com minha atitude tresloucada.
-
Nada. Desculpe, Luísa. Eu procurava por Donato.
Que
situação constrangedora aquela!
-
E por que estaria aqui?
Mais
constrangedor ainda.
-
Nada. Nada. Esquece.
Saí
de lá muito envergonhada. E quando estávamos na sala, D. Deise e eu, eis que
entra meu marido, vindo dos lados da cozinha. Estava de robe, cobrindo o
pijama, e as velhas sandália de couro de andar em casa. Havia ido, segundo ele,
à garagem, pegar uns papeis que esquecera no carro.
Que vergonha!
CAPÍTULO 16
Depois
daquele dia, os pesadelos voltaram a se intensificar, transformando as minhas
noites novamente num inferno. Passei a tomar estimulantes para não dormir, ficando
noites e noites em claro, até cair no sono mais uma vez, em qualquer hora do
dia, sucumbida pelo cansaço. Minha aparência estava horrível. Mais parecia uma
morta-viva.
Infelizmente
não reconhecia em meu marido cumplicidade suficiente para partilhar minha
angústia, meus medos, minha paranóia. E foi aquilo que me fez procurar por
Holanda novamente. E ele, recebeu-me de braços abertos. Nada mais poderia nos
separar. Encontrávamo-nos quase que diariamente. O que eu encarava quase como
uma terapia. Contava-lhe tudo, em detalhes.
Os
abraços cuidadosos de Holanda me faziam experimentar a paz, tão desejada
naquele momento de minha vida. Um momento que deveria ser de prazer, por minha
gestação, transformara-se num martírio. Nos pesadelos, o menino de bata já tão
conhecido por mim, matava meu bebê. Ou eu mesma o fazia.
Temia
enlouquecer e era somente Holanda quem me fazia acreditar no contrário. O que
me dera coragem de contar logo a meu marido nossa reaproximação. Nenhuma
mentira macularia mais nosso casamento, nem muito menos aquela relação de
amizade tão preciosa para mim.
Certamente
Donato não cruzaria os braços. Chegou a procurar a mãe de Holanda, ameaçando-a.
O que despertara a raiva de meu amigo. Que ele não mexesse com sua mãe! Donato
fora longe demais.
Holanda
acabou por invadir a sala de meu marido na RTN, surpreendo-o, sem tempo para
reagir, com um grande soco.
-
Você não mexa com a minha mãe, seu canalha! – Foi ainda para cima dele,
acertando-o mais duas vezes.
Até
o tempo de meu marido se equilibrar direito e acerta-lhe também o nariz.
-
Viado desgraçado! – E mais outro soco.
Foi
Pedro Lucena quem os separou.
-
Escuta bem o que eu vou te dizer, seu canalha. Você nunca mais procure a minha
mãe para lhe impor medo, ouviu? Trate comigo! Você não é tão homem... então
venha sempre a mim. – Procurou esclarecer Holanda, por trás de Pedro, sem
conseguir se aproximar.
-
Eu vou te matar, seu viado desgraçado!
-
Mas antes eu vou acabar com você, seu bandido. Eu vou mostrar pro mundo quem é
o Senador Donato Pessoa.
-
Você não sabe com quem você tá mexendo.
-
Sei sim. Mas não tenho medo de você. Logo, logo a Marina vai ficar sabendo quem
você é realmente.
-
Vamos ver quem vence então.
Aquilo fora um decreto para meu marido.
Lutaria para acabar com a raça de Holanda, afastando-o de uma vez por todas de
mim. Tivera suas feridas remexidas com o ataque de seu rival, como uma fera
machucada. Jamais admitiria ser desacatado de tal modo e nada fazer. O outro
pagaria por aquela ousadia. Palavra de Donato Pessoa!
Logo
que voltou para casa, meu marido tratou de me apresentar as marcas da
agressividade de Holanda, lutando novamente por meu amor, segundo o que dizia
ele. Era uma forma de me encher de dúvidas acerca daquela amizade. Onde
pararíamos?
Dessa
vez minha reação fora diferente. Se Holanda passava dos limites, precisava
ouvir e saber quais eram esses limites. Foi então quando, indignado, por conta
de minhas acusações, questionara o caráter de Donato enquanto político,
enquanto integridade moral de homem. E revelara-me sobre a tal cena por ele
flagrada no estacionamento da RTN. Aquela história de Luísa e Donato vinha como
mais uma bomba em minha vida.
-
O que você me diz então? – Perguntei categórica a meu marido. No fundo, torci
para que confirmasse e acabasse de uma vez por todas com aquela agonia. Foram
sete anos de um casamento carregando o fantasma daquela desconfiança.
-
Absurda e leviana essa acusação, Marina! Sabe o quanto Luísa é importante em
minha vida. Ela já me acompanha profissionalmente há quinze anos.
-
As pessoas sempre comentaram.
-
Fofoca! Pura fofoca.
-
Agora é diferente.
-
Por que foi o boiolinha quem disse?
-
O Holanda não anda com fofocas. Nós somos amigos, quer você queira ou não. E eu
preciso que você me fale a verdade.
-
Eu já falei a verdade. Não sei mais o que dizer.
-
Pois muito bem. Então me prove. Quero a Luísa fora de nossa casa, fora de seu
trabalho, fora de nossa vida.
-
Como é que é?
-
Isso mesmo que você ouviu. Estou farta desse fantasma assombrando a minha vida.
-
Marina, mas isso é injusto. É leviano.
-
Não importa. Passei minha vida inteira sendo justa. Tenho o direito de ser
leviana pelo menos uma vez.
-
Absurdo!
-
É a condição de continuarmos.
-
Você está sendo mimada, Marina.
-
Não há outro modo. É pegar ou largar.
Usava
das mesmas armas de meu marido - A opressão. Ele agora provava do gosto de seu
próprio veneno. Acho até que gostei de vê-lo sentindo aquela indignação. Sendo
colocado contra a parede pela própria esposa, submissa até então.
-
Muito bem. Eu demito a Luísa, peço que saia de nossa casa. E você pára de se
encontrar com esse viado.
-
Negativo, Donato.
-
O quê?
-
Eu preciso do Holanda.
-
Você não percebe que ele está fazendo de tudo para nos separar? Esse
filho-da-puta tá querendo acabar comigo, destruir nossa relação.
-
Esse “filho-da-puta” é meu amigo.
Nunca
antes Donato me vira pronunciar um palavrão que fosse. Começava a ver que eu
não brincava. Obrigando-se a engolir no seco.
Quanto
a Luísa, preferi não vê-la. Dona Deise depois me falou que saiu de nossa casa
aos prantos, humilhada. Aquilo me doeu o coração. Mas na verdade eu sempre
sonhei com aquela mulher longe dali, longe de nossas vidas. Não sabia ao certo
de sua inocência. Acreditava, contudo, que minha intolerância e exigência
trazia uma pitada de vingança, pela dúvida eterna vivida em meu casamento.
Confesso até que não importava mais se era ou não verdade aquela história. Era
a hora de ir à forra.
A complacência de meu marido,
entretanto, amedrontava-me. Para Holanda, aquilo fazia parte apenas de uma
estratégia. Se fosse, logo saberíamos. O que me causava receio era “como”
saberíamos. E se ele planejasse algo
contra meu filho?
No
fundo, temia o que Donato poderia fazer caso eu me separasse de vez. Por isso,
decidi ceder a seu jogo, se havia algum, e permanecer no casamento pelo menos
até o nascimento de meu filho. O que para Holanda era uma grande loucura.
-
Por que se permitir a fazer parte desse jogo sujo? – Holanda procurava saber
preocupado.
-
Por meu filho.
-
Ele não pode nada contra você, nem contra esse bebê. Tem muita coisa em jogo,
Marina. O cargo na RTN, o mandato de senador, a posição por ele conquistada até
agora. Ele não teria coragem de perder, pôr uma vida de conquistas em risco.
-
Você não conhece o Donato. Quando ele elege alguma coisa pra ser sua, nada mais
importa. Ele quer sim o poder, o dinheiro. Mas nesse momento o objeto de poder
dele não é a posição social que ele ocupa, nem cargo nenhum. O objeto da obsessão
de meu marido nesse momento sou eu. E isso me apavora.
-
Eu duvido que ele tenha coragem de fazer alguma coisa.
-
Eu não. Eu vi muita coisa suja nesses últimos sete anos, Holanda.
-
E por que nunca se manifestou?
-
Eu o amava. Preferia fingir que na enxergava, entende? Era mais fácil. No
fundo, eu era como ele.
-
Não. Você nunca será como ele.
-
Eu era sim. O que mudava era apenas o foco. Ele queria o dinheiro, os amigos
ricos, o respeito, o reconhecimento social. Eu queria a ele, nosso casamento. E
para isso, eu me permiti. Para manter esse casamento dos meus sonhos, com o meu
príncipe encantado, eu me corrompi. Larguei minha família, meu amigos, meu
trabalho, minha identidade. Passei a viver a vida que o Donato traçou pra mim.
E foi essa minha grande prisão. As portas que eu encontro fechadas em meus
pesadelos é a minha própria vida, entregue a alguém como se fosse uma coisa, um
objeto.
-
Mas agora você tem consciência.
-
Mas isso ainda está em mim. Na minha carne, sabe? No meu sangue, correndo nas
minhas veias.
-
Do que você está falando?
-
Do meu coração.
-
Você ainda gosta dele?
-
Não sei mais.
-
Quando amamos não temos dúvida.
-
Eu preferia não tê-la. É isso que me faz hesitar, entende?
Holanda me olhava atento, cuidadoso, um
tanto tristonho com minha declaração. Aquilo de certa forma nos afastava um
pouco. Donato representava toda a minha doença e eu ainda não tinha certeza se
não a queria. O medo talvez fosse uma desculpa. Tanta coisa já havia mudado. No
passado jamais eu imaginava enfrentar, posicionar-me contra qualquer afirmativa
de meu marido. Naquele momento aquilo já se fazia uma constante. Temia, mas
enfrentava.
CAPÍTULO 17
Numa
viagem de Donato a Brasília em meados de novembro de 2011, acabei por ligar
para Holanda de madrugada, implorando-o que viesse me fazer companhia. Fora um
de meus piores pesadelos, no qual eu degolava dezenas de crianças que brincavam
em um parque. Encontrava-me transtornada ao telefone. Dali a menos de uma hora,
às duas da madrugada, ele já estava comigo, permitindo que eu deitasse a cabeça
em seu peito, no chão de nossa sala. Chorei muito antes de conseguir dormir, ninada
por aquele homem, o qual me proporcionava tanta paz. Acordei ao raiar do dia, e
ele ali, firme em seu intento de me proteger e me acarinhar. Às vezes parecia
um garotão, de olhar inocente e sorriso largo.
-
Você não dormiu? – Perguntei meio desnorteada.
-
Tinha coisa mais importante a fazer. – Respondeu-me prontamente, sorrindo.
Gentil e sedutor. Sabia bem como me agradar.
Lembrei-me
de como eu deveria estar horrorosa, assanhada e na certa com mau hálito.
-
Que vergonha!
-
Nada. Você está linda. Parece uma menina. Pode ir comprar os pães, numa boa, e
não vai assombrar ninguém. Juro. – Sempre de bom humor. Nem parecia ter passado
a noite acordado, tentando me acalmar.
-
Que nada. Palavra de publicitário.
E
rimos. Estávamos um olhando para o outro. Eu ainda em seu colo. E Holanda, já
demonstrando certa excitação. Desejei que me beijasse logo, antes que eu
desistisse. Se me beijasse, não aceitaria. Não podia. Não ali.
Foram
segundos. E pude sentir os lábios quentes de Holanda me tirando todas as forças.
A gestação de quase sete meses não fora empecilho para que pudéssemos nos amar,
na sala, cenário de uma vida de muitos anos ao lado de Donato Pessoa.
Holanda
soubera me amar como nunca meu marido o fizera. Ele era intenso e amoroso.
Tê-lo dentro de mim fazia-me sentir novamente a beleza perdida de minha alma, a
voz de um ser gritando por socorro e encontrando nos braços daquele homem o
ápice de sua expressão.
Meu
casamento havia realmente acabado! Não hesitei em sentenciar a Donato, logo ao
chegar de Brasília. Na verdade, minhas coisas já estavam na casa de Vanessa.
Precisávamos apenas oficializar a situação.
Donato
me segurara pelos ombros, sacudindo-me numa de suas últimas tentativas. Eu
estava irredutível.
-
Você não pode sair assim da minha vida!
-
Acabou, Donato!
-
Não! Eu te amo, você me ama.
-
Não amo mais. – Podia dizer finalmente olhando em seus olhos. Doía, no entanto.
Foram dez anos de um sonho que acabava ali. No inicio, planejávamos ficar bem
velhinhos, juntos, amando-nos. E então, nada mais restava. Senão o medo, e uma
pequena esperança de que tudo pudesse ser diferente. Mas nada realmente
significativo, cuja força nos oferecesse sustentação.
-
Não pode ser. – Nunca o vira tão fragilizado.
-
Foi a nossa história, Donato.
-
Deve haver uma saída.
-
Infelizmente não há mais.
-
Por quê? Por que deixamos chegar a esse ponto, Marina?
-
Eu tentei te falar. Há seis anos eu tento, mas você estava surdo, cego.
-
Eu preciso apenas de uma nova chance Marina.
-
Eu te dei todas, Donato.
-
Não! Eu não aceito! Me diz o que eu tenho que fazer, eu faço.
-
Não há mais o que ser feito. Aconteceram coisas que não tem mais como voltar
atrás, entendeu?
-
Qual foi o erro afinal?
Queria
apenas ser ouvida, amada!
Donato
não fora culpado sozinho pelo fim de nosso casamento. Acho que já havíamos
começado pelo caminho errado. O fim, na verdade, se fizera enquanto coluna de
uma relação fadada ao fracasso. Ele, desejando-me como mais uma de suas
inúmeras conquistas. E eu, lutando por uma relação idealizada e mentirosa.
Ambos, perdidos do presente que a vida nos oferecia, o nosso encontro.
Foram
semanas dolorosas aquelas que transcorreram a minha separação de Donato Pessoa.
Preferi me distanciar um pouco de Holanda, afim de preservar a magia de nossa
relação. Encontrava-me ferida, machucada, lamentando o que não fora vivido ao
lado do homem o qual considerava minha alma gêmea. E aquilo doía. Era uma
escolha, mas uma escolha dolorosa, sofrida.
Donato,
por sua vez, ainda não acreditava num fim. Preferia encarar aquela situação
como a vez em que voltei de Brasília e fui para a casa de minha irmã. A
estratégia então era de recuar, dar tempo ao tempo e deixar a poeira baixar.
Atribuía ainda uma parcela de responsabilidade à minha gravidez. “Algumas
mulheres enjoam o casamento durante a gravidez.” Era mais fácil enfrentar
daquela forma e sofrer menos. Para ele então, uma perda irreparável. Chegava a
ter pena. Uma pessoa como meu marido não sabia lidar com perdas.
Em
meados de dezembro, todavia, uma revelação sobre Donato Pessoa fora o golpe de
misericórdia para sua morte em meu coração. Fui procurada por Luísa.
Inconformada, sentindo-se humilhada pelo afastamento de seu amante, resolveu
experimentar o sabor da vingança, contando-me detalhes de seu romance, de como
me traíam bem debaixo de meu nariz, como o episódio do escritório no qual ambos
realmente estavam transando. E que aquele afastamento dos dois não passava de
um plano, uma fachada, a fim de assegurar minha confiança. Donato só não
contava que aquilo trouxesse a ira à amante, como ocorreu. Ela cansara de ser
humilhada.
Vivi
uma grande mentira durante dez anos de minha vida!
O
grande golpe planejado por meu marido na verdade se devia ao sumiço que ele
daria ao nosso filho, logo que nascesse. Seguindo do assassinato de Holanda, do
qual seria eu acusada. Assim me teria em suas mãos. Se aquilo fosse verdade,
seria uma monstruosidade. Lembrei-me então do que eu mesma havia falado a
Holanda, semanas antes, de que meu marido seria capaz de tudo para conservar
minha presença ao seu lado, considerando-me como propriedade valiosa. Tudo!
Sim, eu bem sabia que ele seria capaz daquilo sim. O que me levou a fugir com
Holanda para um sitio de um amigo em Guaramiranga. Precisava me resguardar,
pelo menos até meu filho nascer.
~
Numa
tarde, naquele final de ano, Holanda havia saído para ir até á cidade,
providenciar mantimentos. Eu arrumava algumas roupinhas do bebê no quarto do
sítio, ao ouvir um barulho. Alguém parecia ter entrado na casa. Donato! Ele
poderia ter descoberto nosso esconderijo, depois daquelas semanas, e vinha
buscar o que era “seu”. Precisava proteger meu filho!
Entrei
no armário, logo à frente, de onde pude acompanhar os paços de meu marido
entrando no quarto. Ele portava um sobretudo grafite por sobre o paletó pouco
mais claro e uma gravata de listas vermelhas, que se destacava ao fundo bege da
camisa interna. Os sapatos italianos reluziam a sua impecabilidade. Sempre
vaidoso, em qualquer situação. O que eu já não mais enxergava como algo
saudável. Ele se revestia de uma armadura de grife, para esconder ou gritar ao
mundo a sua doença. O que me assustara foram as luvas. Por que luvas?
Donato
vasculhou todo o quarto e por fim, restava o armário, meu esconderijo. As
portas da segurança de meu filho. Ele suspirava ao se movimentar, causando-me
ainda mais medo, como se possuído.
Abriu
então as portas do armário. E ali, eu estava, trêmula, aterrorizada.
-
Por favor, Donato!
-
Finalmente, sua vagabunda!
Puxou-me
de dentro de minha redoma de madeira, jogando-me no chão.
-
Por favor, Donato! É nosso filho. – Tentava proteger minha barriga.
-
Meu? – Ele trazia nos olhos um traço de fúria e horror.
-
Nosso filho!
-
É o filho do demônio!
Sacou
de uma faca, encravando-a em meu ventre.
-
Nãããããããããããããããããão!
Acordei,
abraçada por Holanda.
-
Calma. Calma. Foi apenas um pesadelo. Calma.
-
Ele queria matar meu filho.
-
Psssssssiu. Eu estou aqui. Nada demais vai acontecer. Eu vou te proteger.
Os
pesadelos me perseguiam por onde eu fosse. Faziam parte de mim. Holanda
acreditava que pudessem parar depois da gravidez. Talvez dar à luz fosse minha
redenção. Senão, concordamos em procurar por um especialista, o qual pudesse me
ajudar a acabar com aquela agonia.
Fosse
o que fosse, estaria perto.
Passamos
o Natal de 2011 sozinhos no sítio. Fizemos um jantar à luz de velas. Um momento
lindo em meio a tanto sufoco e tensão. Começava a enxergar meu encontro com
Holanda como uma porta se abrindo. Era o enfraquecimento de uma das muitas
fechaduras que aprisionavam a minha existência. Ao seu lado, sentia-me feliz.
Ainda
naquela noite, ficamos sabendo da tragédia ocorrida na festa realizada na casa
de Leonardo Gondim. O que nos deixou abalados. Mas precisávamos nos concentrar
em nossa reclusão. Holanda não poderia ficar mais tempo longe do trabalho e
pensávamos numa saída.
O
fato é que precisei ficar sozinha, depois de Holanda retornar a Fortaleza, para
tomar algumas providências importantes na WM. Fora uma noite chuvosa. Justo
quando fui acometida de fortes dores. Nem havia completado oito meses de
gravidez ainda. Se já era hora, seria prematuro.
E
se os pesadelos tivessem sido um presságio? Se meu filho corresse risco de
vida, não por um atentado do pai, mas por pura displicência da mãe, após ser
avisada por minha própria intuição diversas vezes do perigo que rondava aquela
gravidez?
Eram
fortes dores. E por fim, sangue.
“Meu
Deus, me ajude, por favor! Me ajude! Não quero perder meu filho!”
Ouvia
somente minhas súplicas em meio ao som das águas que caiam dos céus, como se o
mundo estivesse desabando.
Perderia
então meu filho depois de tanto lutar por sua vida?
Nada
de linha no telefone, e o carro, Holanda levara consigo de volta a Fortaleza.
Sozinha, na agonia de muitas dores, sangrando. O que afinal poderia eu fazer?
Ali, minutos pareceram uma eternidade. Vivia o maior pesadelo de minha vida.
Caí
no chão no meio da sala, sem forçar para gritar ou ainda suplicar a Deus pela
vida de meu filho. Via apenas a claridade dos relâmpagos, tornar visível os
móveis rústicos daquela sala em intervalos pequenos, como as de minhas
contrações. A energia faltara logo depois do início de meu martírio.
Num
daqueles clarões que vinham e iam, possibilitando-me enxergar melhor minha
própria barriga, assustei-me ao ver o menino. O menino de bata branca, dos meus
sonhos, bem diante de mim. Olhando-me como a um brinquedo.
-
Você conseguiu então? – Falei com dificuldade.
-
Não. Você conseguiu. – Ele sorriu.
Estávamos
falando da mesma coisa?
-
Meu filho vai morrer! – Chorava, acompanhando minhas próprias dores.
-
Ainda pode salvá-lo.
-
Como?
-
Só você sabe.
Aquele
rostinho aparecia e desaparecia nos intervalos de cada relâmpago.
-
Não entendo, menino.
-
Não sou seu filho.
-
E quem é você afinal?
-
Você.
E
de repente, já não era mais o garotinho, mas eu mesma, criança, chorando a
morte de meus pais. Por um instante, não mais ouvia o som da chuva, dos
trovões, apenas aquele choro, o meu próprio choro em menina.
-
É um sonho?
-
Não.
A
resposta não veio da menina, que não mais estava ali. Mas de Donato, diante de
mim, já me pegando no colo. Em seu rosto, um ar de preocupação e transtorno. Os
olhos transbordando em lágrimas.
“Não
mate nosso filho.” Minha única fala, quase sem forças, perdendo a imagem
daquele rosto sofrido, deixando escapar uma lágrima solitária. Nossas vidas
estavam nas mãos de homem traído, cheio de amargura, com cede de vingança. Ele
decidiria então o nosso destino.
Parecia
que eu mesma estava morrendo. E Donato não suportara a dor de simplesmente
pensar naquela possibilidade.
“Salve
minha mulher, doutor.”
Pude
ainda ouvir aquele pedido, no hospital. Pensei em dizer para salvar meu filho.
A minha vida não importava. Mas não tinha mais forças para me fazer ouvir.
Donato
Pessoa temeu minha morte, como nunca temera nada em sua vida. E até chegara a
rezar, pedindo a um Deus, o qual não acreditava, para que pudesse me salvar.
E
quando voltei, vi a imagem do homem a quem atribuí todos os meus sonhos,
sentado numa poltrona, olhando-me atento. Logo que percebeu que eu havia
acordado, precipitou-se a assegurar-se de que estava tudo bem.
-
Meu filho... – Mal podia falar. Mas era a única coisa que me vinha naquele
instante. O tal plano de Donato, revelado por Luísa. Havia se concretizado?
-
Não se preocupe. Está tudo bem agora. – Ele garantiu terno.
-
Onde ele está?
-
No berçário. Mais tarde eles trazem para você.
Tive
vontade de perguntar pelo plano. Não podia.
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Pensei que fosse um sonho, mais um pesadelo.
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Ainda bem que eu cheguei a tempo.
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Você o viu?
Ele
desviou o olhar por um segundo.
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Não.
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Por quê?
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Você tinha razão sobre nós. Sempre teve. Eu não te ouvi.
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Ainda pode ouvir.
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Você estava certa de fugir de mim.
Pensei
em perguntar se falava do plano de sumir com nosso filho, matar Holanda e
atribuir a culpa a mim. Não cabia.
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O que importa é que você está aqui. Devemos a nossa vida a você, Donato.
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Eu só queria salvar a você. – Baixou a cabeça e caiu em prantos. Tive vontade
de cuidar, passar a mão em sua cabeça. Mas ao mesmo tempo, senti ainda medo e
asco de vê-lo falar aquilo do próprio filho. – Eu não sou um salvador, Marina.
Quando te achei, tinha outro objetivo. – E eu sabia bem qual era. – Esse menino
me lembra um monstro dentro de mim. – Não conseguia parar de chorar. – Esse
monstro sou eu?
Podia
sentir sua dor, o desespero de se deparar consigo em espelho.
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Você não deixava de ouvir somente a mim, Donato. Mas a si mesmo.
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Vá viver sua vida, Marina.
Nem
acreditei no que ouvira. E ver a imagem daquele homem, tão forte, inabalável,
poderoso, desaparecer daquele quarto de hospital, enxugando as lágrimas que lhe
acusavam uma fragilidade a qual nunca admitira existir, me fez cair num choro
restaurador.
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Donato? – Chamei-o antes que se fosse.
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Sim.
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Você já começou a ouvir.
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Você também. – E se foi, levando consigo um mundo de fantasias o qual
alicerçara a minha vida até então.
Donato
Pessoa assumiria a presidência da RTN, após uma sociedade constituída por seu
partido comprar 51% das ações da emissora, numa tentativa da família de salvar
o legado de Leonardo Gondim da concordata. Aos poucos, atingia todos os seus
objetivos, sozinho.
Quanto
a mim, nos últimos dias do ano de 2011, desembarquei com meu filho e Holanda no
Rio de Janeiro, onde ele assumiria um cargo na matriz da WM. Preparava-me para
estrear em alguns meses uma grande campanha publicitária. Começava a ouvir a
voz da realidade gritando por mim.
Marina Pessoa
Fortaleza, 10 de fevereiro de 2012, 23h14.