A Casa dos Anjos - Continuação: A História de Celina Gondim
Antonio Rondinell - 2010/2011
CAPÍTULO 1
Os
últimos três anos de minha vida foram marcados por uma intensa luta de
reabilitação, para que eu voltasse a andar. Fazia seis anos desde o grave
acidente em que fiquei tetraplégica.
Tomei o acidente como uma pena por tudo
o que eu havia feito a minha família. Foram anos de sofrimento e internações em
diversas clínicas de recuperação à dependência química desde a minha
adolescência. Fui destruindo minha vida aos poucos.
Depois de uma longa temporada na
Inglaterra, em mais uma das incontáveis tentativas de meu pai para me livrar do
vício, decidi registrar minha luta num livro chamado Entre o amor e as
drogas. Transformado em best-seller pouco tempo depois. Época em que
conheci Vinícius, meu editor, que viria a ser o meu marido, meses mais tarde.
Dois anos de um casamento feliz, até mais uma recaída. Ele tudo fizera para me
ajudar. Resultando naquela noite infeliz em que peguei o carro, completamente
drogada, após uma briga descomunal, em que causei a sua morte.
Perdia meu marido e meus movimentos ao
mesmo tempo, como uma forma de punição a tudo o que tinha feito. E por isso,
passei os anos seguintes longe de qualquer esforço para uma reabilitação.
Sentia-me culpada pela morte de Vinícius e precisava pagar de algum modo.
Afastava-me cada vez mais do que era real e me entregava novamente a uma nova
forma de fantasia, naquele momento um castigo por todo o sofrimento causado a
ele e a meu pai. Era como se eu criasse um mundo só meu, mais um, como muitos
criados em minha vida.
Filha do segundo casamento de Leonardo
Gondim, sofri com a distância de meu pai durante toda a minha infância, depois
de sua separação de minha mãe. O casamento dos dois não suportou os ciúmes de
Maria Eugênia, minha irmã mais velha, na época uma adolescente. Para ela minha
mãe era culpada pela morte da sua. Papai e mamãe pareciam ter se conhecido
antes que ele ficasse viúvo.
Ainda na infância, ganhei uma casinha de
madeira, guardada por três anjos na frente. Cabia nas palmas das minhas mãos. O
vendedor me dissera tratar-se dos três Arcanjos Maiores – Miguel, Rafael e
Gabriel. Ali eu poderia fazer pedidos e, juntos, os anjos os transformariam em
realidade. Assim, eu poderia mudar o mundo a minha volta, com a minha casinha
mágica. Meu pai me daria mais atenção, minha irmã passaria a gostar de mim,
mamãe e eu seríamos mais felizes. Durante anos foram milhares de pedidos, vivendo
a felicidade por sua realização. Embora a maior parte deles nunca tenham se
concretizado. No entanto, no momento em que eu fazia o pedido aos anjos, já me
sentia mais feliz, imaginando sua realização, que nunca acontecia. Era um mundo
imaginário que me conduzia permanentemente à felicidade, embora que fantasiosa.
Foram anos vivendo o universo criado em
torno da minha casa dos anjos, até a morte de mamãe. Meu último pedido foi que
ela voltasse a ter vida. Ali percebi que tudo não passava de uma grande fantasia,
que a realização de nenhum dos pedido me fora concedida. Senti-me tola, sem
amigos, longe de papai, vivendo uma vida de mentiras. E naquele momento, sem a
presença de mamãe. Nem a casa dos anjos, nem ninguém poderia trazê-la de volta.
Deus fora severo comigo! Quebrei a casa dos anjos para sentir a dor de perder a
única pessoa que me amava.
Finalmente fui morar com meu pai e minha
irmã. Começando a enfrentar o novo desafio. Maria Eugênia me odiava e fazia da
minha vida um inferno. Adorava me humilhar diante de suas amigas, destruía
qualquer coisa que eu gostasse. Tratava-me como uma bastarda.
Conheci o primeiro cigarro de maconha
ainda na adolescência, como forma de fugir daquela realidade brutal que eu
experimentava diariamente. Era um novo mundo, uma nova fantasia, que me puxava
do que era real e me fazia sentir um pouco mais feliz, mesmo que por alguns
instantes.
Morri em vida, sem aceitar a condição de
tetraplégica. E depois de anos me martirizando, culpando-me pela morte de
Vinícius, isolando-me cada vez mais do mundo real, tendo abandonado o universo
da literatura, mesmo com o sucesso em vários países com a publicação de Entre
o amor e as drogas, e da novela Sertão, escrita para a RTN pouco
antes do acidente, papai e Pedro Lucena me convenceram a voltar ao trabalho,
inicialmente como musa inspiradora da série Tente Outra Vez, para
o horário nobre da emissora, mais tarde, integrando a equipe de autores
da história. O que só veio a acontecer de fato, após um sonho em que Vinícius
me apareceu pela primeira vez, pedindo para que eu voltasse à vida, a lutar
pela minha felicidade. Que eu precisava me perdoar. E para isso, bastava ouvir as
batidas do meu coração – Título do primeiro episódio da série Tente
outra Vez escrito inteiramente por mim, marcando o meu retorno à vida.
Foram três anos de muito esforço e
dedicação, lutando incansavelmente para recobrar meus movimentos. Há mais de um
ano eu havia me livrado da cadeira de rodas, andando apenas com a ajuda de uma
bengala. Meus membros vinham retomando sua força a cada dia, deixando-me cada
vez menos dependente. Embora me locomovesse ainda com certa dificuldade, bem
devagar, focando passo a passo. Meus movimentos se desenhavam como uma dança
ensaiada, resultado de muito empenho. Progresso também percebido em minha
dicção, as palavras já se pronunciavam com mais clareza e menos espaçadas. Eram
horas diárias de fisioterapia numa sala de reabilitação construída em nossa
casa especialmente para mim. Papai não poupou esforços nem dinheiro, foram
gastos milhões na estruturação do espaço, com equipamentos de última geração.
Além de três grandes profissionais contratados a peso de ouro para estarem à
frente de meu tratamento.
~
Minha enfermeira Dulce tornara-se minha
grande amiga naqueles anos de confinamento e cansaço. Ela me acompanhava em
todos os momentos, em todas as longas e dolorosas sessões de fisioterapia.
Surpreendendo-me com uma notícia um tanto quanto indesejada naquele início de
dezembro de 2009. Acabávamos mais uma sessão de fisioterapia quando ela me
abordou com o assunto.
- Celina, você já está quase recuperada
totalmente. Logo meu trabalho está ficando obsoleto nesta casa.
- Você obsoleta, Dulce?
- É verdade. – Sorria, pegando umas
toalhas na maca. – Vim para cá com o objetivo de cuidar de você. Acho que
cumpri minha missão.
- O que está querendo dizer com “cumpri
missão”?
- Celina, você já não necessita mais de
mim há muito tempo. Está cada vez melhor, mais saudável. Vai para todo lugar
sozinha. Não precisa mais de mim. Sua saúde está perfeita. Hoje estou me
sentindo mais uma dama de companhia do que propriamente uma enfermeira. Vê se
pode isso.
Aquele assunto não era muito do meu
agrado. Em outros momentos ela havia tentado falar sobre aquilo e eu procurava
fugir, mudar de assunto. No entanto, não conseguiria cozinhá-la em banho maria
por muito tempo.
- Você sempre falou de nossa jornada,
Dulce. Que venceríamos juntas.
- E vencemos.
- Não terminou ainda.
- Celina, você não quer enxergar.
Cheguei a esta casa pouco depois do seu acidente. Temíamos por sua recuperação.
Passei anos cuidando de uma tetraplégica. Hoje você é uma mulher praticamente
normal. Recuperou mais de setenta por cento dos movimentos. Caminha sozinha,
faz tudo sem a ajuda de ninguém.
- Eu preciso de você, Dulce?
- Para quê?
Um longo silêncio. No fundo ela tinha
razão. Temia continuar sozinha, essa era a verdade. Dulce representava um ícone
para minha recuperação. Estivemos juntas em muitos momentos dolorosos de minha
vida. Ela me ajudou a enfrentar não somente meu estado de tetraplégica, mas o
inferno criado por Maria Eugênia dentro de casa para me maltratar, por ser eu a
filha do segundo casamento de nosso pai. E quando não podia me locomover, era
como se fôssemos uma só pessoa. De repente, me imaginar sem Dulce, seria perder
um pouco de mim mesma.
- Dulce, você está insatisfeita aqui? –
Precisava reverter de algum modo.
- De certa forma sim. Eu sou uma
enfermeira, Celina. Há muito tempo não tenho exercido minha profissão aqui
nesta casa.
- Você não é apenas minha enfermeira, é
minha melhor amiga, ou a minha única amiga. Nós estamos juntas nessa, lembra?
- Mas essa não e a minha profissão,
Celina.
- Eu sei. Acho que não estou preparada
para ficar sem você.
- Nós não deixaremos de ser amigas.
- Posso então te pedir uma coisa?
- Claro.
- Vamos amadurecer melhor isso.
- Celina...
- Por favor, Dulce. Deixa eu ir me
acostumando com isso, com a ideia de ficar sem você. São seis anos juntas. Foi
tanta coisa. Além do mais somos quase casadas. – E rimos, com os lhos
marejantes. Brincávamos com aquela história há anos.
- Celina, já tem quase um ano que eu
tento ter esta conversa com você.
- É difícil para mim, Dulce.
- Para mim também não é fácil. Eu estou
muito acostumada. Afinal são seis anos morando aqui, partilhando minha vida com
você e sua família. A gente acaba se sentindo parte.
- Mas você é parte.
- Não sei não, viu? – Sorriu, um pouco
envergonhada.
No fundo, sabia que isso aconteceria
mais cedo ou mais tarde. Precisávamos apenas pensar numa forma de Dulce voltar
a trabalhar, sem necessariamente ter que ficar tão longe de mim. Lembrei-me da
casa dos anjos, de meu poder em transformar o que era indesejado. Se fosse real
aquele poder, pediria a presença permanente de Dulce em minha vida. O apego, um
dos maiores pecados do ser humano. Seria maravilhoso se conseguíssemos
estabelecer relações de liberdade e amor, sem considerarmos o outro como
propriedade nossa. Substituindo a dependência pela interdependência de almas.
Uma lição que eu precisava aprender a partir daquele momento.
CAPÍTULO 2
E
como minha vida mudara nos últimos três anos. O desejo de morte como punição
era coisa do passado. Sentia-me cada vez mais forte, feliz. Diversos outros
encontros com Vinícius marcaram meus sonhos naquela época, coisa que jamais
acontecera antes de minha decisão por voltar a criar, a escrever. Nos sonhos
ele se mostrava feliz com meu caminho e me inspirava na expressão da minha
arte.
Outra presença importante no processo de
meu retorno à vida fora Pedro Lucena. Amigo leal, desde a adolescência, pela
amizade de nossos pais e por trabalharem juntos. Era ele meu porto seguro
quando estive na clínica de recuperação em Londres, dando-me o apoio
necessário, mesmo com os ciúmes de sua esposa Vanessa. E mais tarde, ao voltar
para Fortaleza, após a morte de seu pai, incentivou-me na redescoberta da
escritora em mim, criando inúmeras oportunidades dentro da própria RTN, a fim
de que eu voltasse a escrever. Como a implementação da série Tente Outra Vez,
trazendo a deficiência física e suas nuanças, o preconceito, a dificuldade do
portador em nosso país como tema em discussão, para a sensibilização da
sociedade a esta problemática, abordada a partir de um centro de reabilitação.
Empreitada de sucesso, obtendo média de dezesseis pontos de audiência no
horário nobre, chegando muitas vezes ao primeiro lugar, da qual assumi a chefia
da equipes de autores.
Pedro e eu estivemos juntos incontáveis
vezes nos últimos anos, nas quais ele me falava do universo infinito de
criações em mim, pulsando por expressão. Mesmo depois das drogas, das inúmeras
internações e recaídas, dos dois anos de abstinência sem nada produzir após o
acidente, em nenhum momento ele desistiu ou deixou de acreditar em mim. Um
incentivador fiel de meu trabalho, de minha arte. Foi dele a ideia de
transformar minha experiência no encontro com as drogas em livro, dando vida à
escritora Celina Gondim.
Naquele início de dezembro de 2009,
Pedro me surpreendeu com outro grande convite ousado. Eu estava em minha sala
de reabilitação, em plena atividade, ainda acompanhada dos fisioterapeutas,
quando entrou sorridente.
- Como anda a minha autora preferida?
- Pedro? Que surpresa! – Sua presença me
deixava extremamente feliz.
- Bom te ver assim, Celina. – Disse ele,
acolhendo-me num caloroso abraço.
- Há quanto tempo...
- Tenho andado bastante ocupado. Estamos
estreando uma nova grade de programação no horário nobre, especiais de final de
ano, isso tem nos tirado o sono. É muita coisa nova vindo por aí.
- Eu preciso de um intervalo. – Pedi aos
fisioterapeutas.
- Deixem-na um pouquinho só comigo. Juro
que cuido bem dela. – Acrescentou, sorrindo. – Alguns minutos apenas.
- E o que o traz aqui? – Ele me ajudou a
levantar do aparelho.
- Não posso visitar a minha autora
preferida?
- Não só pode como deve. Mas estou quase
certa que o vice-presidente de uma das maiores emissora de televisão do país
não tem tempo de sair assim durante o dia a fim de visitar os velhos amigos,
jogar conversa fora. Estou errada?
- Por que me tomas, Celina Gondim? – Fez
cara de sério, e depois abriu grande sorriso. – Acha que tenho interesses
escusos?
- Você? Jamais! – E rimos juntos.
- Ainda bem. Pensei que a minha velha
amiga estivesse me confundindo.
- De jeito nenhum. Tenho até medo quando
chega assim como quem não quer nada. Geralmente é coisa séria.
- Não tão séria assim. Quer dizer... –
Passando a mão pelo cabelo crescido, como sempre o fazia, levando-o para trás,
seguido de um suspiro. – Depende de ângulo em que se observa a situação.
- Pedro Lucena! – O repreendi,
brincando.
- Tá, está bem. – Erguendo as mãos, para
me acalmar. Pode ser sério ou não. Para um empresário do mundo televisivo sim,
para um artista talvez não.
- Você e suas parábolas.
E ele sorriu.
- É que o artista enxerga a coisa de
outro ângulo, pra ele isso é também diversão, acho que ele sabe saborear o
trabalho melhor que ninguém.
- O que não impede de reconhecermos a
seriedade naquilo que fazemos.
- Mas a seriedade não vem com o peso com
que você falou inicialmente.
- Tem razão. Mas e então...
- Quero que escreva uma das nossas
próximas novelas.
Realmente não senti peso em seu convite
natural.
- Claro. – Ainda não tinha me dado
conta. – Como? – Finalmente a caiu ficha. – O que você disse, Pedro?
- Quero que escreva uma de nossas
próximas novelas. – Repetiu naturalmente.
- Você deve ter enlouquecido.
- Eu sou louco. Por isso sou o
vice-presidente da RTN. – Falava tão sério e com tanta naturalidade, que eu até
acreditava. Coisas de Pedro Lucena. Uma figura adorável.
- Não, não deve estar falando sério.
- Celina Gondim, sabe que não homem de
brincadeiras. – Afirmou com tom sério. – Não sempre. – E completou. Depois,
sorriu. – É sério sim. Já demos tempo mais que suficiente para você voltar a
tomar o ritmo.
- Uma novela não é como um série de
episódios semanais.
- Claro que não. Por isso estou lhe
convidando.
- Pedro, já fazem seis anos.
- Sertão foi um grande sucesso, e
foi sua primeira novela.
- Eu sei, mas a série deu certo, é um
grande sucesso. Não vou deixá-la.
- Tente Outra Vez não estará na
programação de 2010, Celina.
- Como assim? A RTN não pode tirar um
trabalho desses do ar. E o retorno comercial? Garantimos muita audiência, e de
qualidade no horário nobre.
- Temos outras propostas para mantermos
a qualidade de nossa audiência próximo ano. Vamos encerrar a temporada de Tente
Outra Vez com grande sucesso, não quando estiver em baixa. Para nós isso é
um diferencial.
- Não, não compreendo.
- Por isso decidi vir pessoalmente
conversar com você.
Pedro conseguiu me tirar o chão. Passara
os últimos três anos à frente daquele trabalho, tendo meu talento reconhecido,
fazendo algo em que verdadeiramente acreditava, ajudando as pessoas a
enxergarem um universo até então ignorado. Toda a equipe de atores, diretores,
autores era perfeita. Tente Outra Vez havia sido para mim um convite de
retorno à vida. E naquele momento, seu criador anunciava o fim. Simples assim.
- Não concordo, Pedro. Definitivamente
não concordo! – Nem conseguia reconhecer aquela atitude num homem como ele,
sempre preocupado em ajudar o outro, desenvolvendo trabalhos sérios e de
qualidade, oportunizando o crescimento e a expressão das pessoas. Conseguia
equilibrar perfeitamente os interesses financeiros da emissora e a coerência
com seus princípios éticos. Ouvi papai afirmar por diversas vezes a sua
profunda admiração por Pedro Lucena, considerando-o seu substituto na
presidência da RTN. E de repente, naquele momento, não enxergava mais que
interesses econômicos e estéticos em relação à programação da emissora. – E os
profissionais envolvidos na série, como vão ficar?
- Eles não serão demitidos, mas
desafiados em outros trabalhos.
- E a idéia? Foi você quem criou a
série. Nós ajudamos muitas pessoas ao longo desses três anos, Pedro. Por que
acabar agora?
- Para não perdermos a credibilidade de
nosso trabalho. Daqui a pouco a fórmula estará desgastada, nos distanciaremos
cada vez mais de nosso objetivo. Acho que foi um trabalho especial para todos
nós. Com certeza marcou época na televisão brasileira. Mas precisamos
reconhecer seu início, meio e fim, como tudo na vida. É um ciclo, entende? –
Colocou novamente o cabelo para trás e prosseguiu: - O equilíbrio está na
aceitação e entrega para vivermos todos esses momentos, plenamente.
- Mas, Pedro, eu acho que ainda não é o
fim.
- O fim não é somente quando
fracassamos.
- Mas quando não há mais ressonância nas
pessoas. E isso não é nosso caso. Tente Outra Vez ainda é sucesso. Toca
o coração de muita gente ainda. Não temos a dimensão do quanto ajudamos.
- E podemos ajudar muito mais. No
entanto, Tente Outra Vez é apenas uma forma. A vida nos convida a outros
desafios, outras formas, muito mais... – Mesmo com resistência, sentia-me
contagiada por sua empolgação. Pedro tinha o dom de envolver com suas palavras,
em seus momentos de criação. Sentia-se livre no pensamento, nas ideias. E
falava disso com fervor.
- Sua arte não pode se limitar a esta
forma de expressão, Celina. Você tem muito a oferecer, a partilhar com as
pessoas.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
- Essa série é como um filho.
- Sei disso. Como seu primeiro livro,
sua primeira novela. Com esse trabalho não poderia ser diferente. Você ama o
que faz, Celina.
- Ela me trouxe de volta.
- Fez parte da vida de muitas pessoas
também, e teve a sua importância. Continuará sendo vendida para outros países,
sendo exibida em nosso canal por assinatura. Essa série tem o seu papel. Mas a
magia no que criamos está em nossa liberdade diante da criatura. Quando damos
forma ao que está no mundo de nossas criações, isso deixa de nos pertencer e
ganha vida própria, passa a ser do mundo, das pessoas, entende?
Era difícil aceitar. Cada episódio
criado, cada personagem, cada historia era meu, me pertencia. Pensar em por um
fim à série seria como abandoná-la, como tirar uma vida.
- Isso me entristece, Pedro.
- Quando uma mãe dá a luz a uma criança,
ela não precisa continuar a gestação para que este ser tenha vida. Você já fez
a sua parte como mãe, como criadora, entende?
Compreendia, mas não aceitava.
- Queria sentir-me livre assim como
você. – Respondi, sorrindo, com olhos marejantes. – Sou muito apegada, Pedro.
- Quero você de volta às novelas,
Celina. Acredito no seu trabalho, sabe disso. Você tem muito mais a oferecer
para o mundo. – Sorriu e completou: - E estou com saudade de assistir uma boa
novela, assinada por você.
Diferente do que eu pensava Pedro não se
orientava simplesmente pelos interesses financeiros da empresa, sabia
exatamente o momento de findar e iniciar outro ciclo, visando, sobretudo o
crescimento de todos os envolvidos, em todas as dimensões. Esse era o Pedro
Lucena que eu conhecia. Tinha sido um dos garotos mais bonitos e cobiçados do
colégio, minha primeira paixão. Devo ter passado anos sonhando com um beijo
seu. Ilusão desfeita quando de meu encontro com as drogas. Acabamos por nos
afastar e nos reencontrarmos somente anos depois em Londres, ele já casado com
Vanessa, e eu em mais uma tentativa de recuperação do vício.
Tranquilamente Pedro anunciara o fim de Tente
Outra Vez. Aquelas histórias semanais haviam preenchido minha vida nos
últimos anos, trazendo sentido ao meu tratamento, à minha recuperação. Elas
faziam parte de mim. E vezes até se confundiam comigo, com meus sentimentos,
minhas angústias e dúvidas. Transferia para o texto as muitas interrogações, as
minhas esperanças, desejos e sonhos. Aquele trabalho era para mim naquele
momento a minha vida. E de repente, meu melhor amigo, justo a pessoa que me
propiciara aquela experiência me exigia um ponto final. Como? Extinguir o
instrumento responsável pela transformação da minha vida de algo sem sentido
para uma existência repleta de significados?
Mais uma vez me recordei da minha casa
dos anjos. Por um instante fiz o pedido. Que aquela conversa com Pedro não
passasse de um sonho. Ou melhor, que ele reavaliasse sua posição,
garantindo mais uma temporada para a série na programação de 2010. Por
pouco não senti a mesma felicidade experimentada em todos os pedidos diante da
casa dos anjos em minha infância, não fosse pela certeza da realidade. Não era
mais uma criança, nem cabia mais aqueles jogos de ilusões. A sentença fora
dada.
Mas e se eu conversasse com papai? Não
que eu quisesse passar por cima de Pedro. Ele poderia convencê-lo do contrário
e continuarmos com nosso trabalho maravilhosamente. Sim, seria uma saída. Vendo
meu desespero, papai certamente se sensibilizaria. Ele melhor que ninguém sabia
o quanto fora difícil para eu renascer do mundo de isolamento no qual vivi
durante anos após o acidente. E tudo fizera para que eu integrasse aquela
equipe. Jamais aceitaria ver seu esforço se destruir bem diante de seus olhos
sem nenhuma atitude tomar para impedir. Papai seria um ótimo aliado.
Por um instante senti-me mal, como se
traísse Pedro e sua lealdade com aquela atitude de menina mimada, pedindo
guarida na barra da calça do pai. Mas seria por uma boa causa. E se eu
acreditava de verdade no meu trabalho, alguma coisa precisava ser feita, não
poderia desistir tão fácil. Talvez fosse esse o convite.
CAPÍTULO 03
Pensei muito na possibilidade de
conversar com papai. Como dono e presidente da emissora ele seria a única
pessoa em condições de reverter aquela situação exposta por Pedro Lucena. Certamente
não sabia ele dos planos de seu vive-presidente a respeito da série Tente
Outra Vez. Ora, papai tinha conhecimento da importância daquele trabalho
para mim. E sendo um programa de grande sucesso há tantos anos no ar, não
permitiria sua extinção, sobretudo se visse o meu desespero em perder meu
porto-seguro, fundamental à minha recuperação.
Foi Dulce, minha enfermeira quem me
chamou atenção para o fato de que poderia sim papai ser cúmplice na proposta de
Pedro. Afinal, este não me queria fora da RTN, pelo contrário, desejava me ver
em uma empreitada maior ainda, voltando às novelas, depois de tantos anos. E como não havia pensado antes? Dulce estava
coberta de razão acerca da cumplicidade profissional entre meu pai Leonardo
Gondim e seu vice-presidente. Estiveram juntos na luta de convencimento para
que eu voltasse a escrever com a série. Por que não estariam naquele momento
novamente?
Bom, precisa tirar aquela história a
limpo. O que não demorou muito para que eu o procurasse. Aproveitei uma tarde
em que havia chegado mais cedo em casa e estava no escritório. Mena, nossa
empregada, só não me contara que se tratava de uma reunião de trabalho.
- Papai, precisava... - Entrei no
ambiente, interrompendo a conversa entre ele e a outra pessoa. – Ah,
desculpem-me. – Constrangimento total. Ele tinha o hábito de realizar reuniões
importantes e sigilosas no escritório de nossa casa.
- Oi, filha. – Falou, surpreso, sem
demonstrar incômodo, com meio sorriso.
- Papai, não quis atrapalhar. Mena me
disse que o senhor estava aqui no escritório. Mas não falou que estava
acompanhado. – Referia-me ao homem, sentado de costas para a entrada do cômodo.
- Sem problemas, querida. – Este é
Tancredo Flores, um dos melhores repórteres investigativos deste país. - E
finalmente o homem se voltou a mim, levantando-se para me conhecer. – Tancredo,
esta é minha filha mais nova, Celina. – Papai me apresentou.
- Olá. – Falei, meio envergonhada ainda,
por ter lhes atrapalhado.
- Prazer, Celina. – Estendendo a mão
para me cumprimentar. – Então finalmente conheço a escritora Celina Gondim?
- Como? – Corei.
- Celina, Tancredo é fã do seu trabalho.
– Antecipou-se papai, que havia percebido meu constrangimento.
- Isso. Sempre que posso assisto os
episódios de Tente Outra Vez. – Complementou Tancredo. – E não é de hoje
que sou seu fã, Celina. – Sorriu. Parecia realmente alegre por estar me
conhecendo.
- Obrigada. – Como saía raramente de
casa, não era comum encontrar fãs do meu trabalho. E foi uma sensação
maravilhosa. Escrevia os episódios da série, sem a consciência de quantas
pessoas acabava por atingir. Tancredo era apenas um dos milhares de
telespectadores. Por um instante, senti um arrepio pela responsabilidade. Minhas
ideias eram partilhadas com tantas pessoas que eu nem conhecia, transformando
histórias de vidas nunca imaginadas por mim. A presença simples daquele homem
provocava-me o contato com a grandiosidade do que eu fazia. Algo não
experimentado há anos.
- O que você ia mesmo dizer, querida? –
Papai logo procurou saber.
- Precisava conversar com o senhor.
- É muito importante?
- Pode esperar, não se preocupe. Como
disse, só entrei por achar que estava só.
- Logo que terminar com Tancredo lhe
procuro então.
- Está bem, eu aguardo.
- Também foi um prazer, Tancredo. –
Finalmente tomei coragem e falei. Pensei em dizer aquilo o tempo todo, desde
que havia entrado ali, e adiava a cada fala com papai.
- Que bom. Podemos então depois
conversar, trocar idéias.
- Sim, com muita satisfação. –
Deixei-os, meio sem graça.
“...com muita satisfação”. Que mico! Por
que dizer aquilo? O rapaz havia sido super espontâneo, natural. Parecia bem à
vontade. Aquela expressão traduzia um formalismo que não cabia no momento.
Tancredo Flores? Sim, era o famoso
repórter investigativo da RTN. Trabalhara por mais de uma década numa grande
emissora carioca e havia sido contratado por Pedro Lucena, há três anos, com o
intuito de reforçar a equipe jornalística da emissora, trazendo mais
credibilidade para este departamento, junto à contratação de outros grandes
nomes da área.
Ele parecia mais bonito pessoalmente do
que no vídeo. Dotado de um charme especial. Talvez tivesse uns quarenta anos,
no máximo. Mais baixo do que parecia na TV. E um cheiro que resistiu em minha
mão, mesmo depois de horas. Vestia-se de forma elegante e despojada, com um
blazer marfim de riscado sobre uma camisa solta azul clara e calças jeans. Lembrava
o estilo de Pedro Lucena, com um pouco mais de despojamento. Já havia assistido
incontáveis matérias e reportagens realizadas por ele, sem nunca pensar que
fosse um dia lhe conhecer pessoalmente. Eu sim admirava seu trabalho de
verdade, na certa como muito brasileiros. Tancredo Flores era um orgulho
cearense. Fora embora de Fortaleza ainda na adolescência para estudar
jornalismo no Rio de Janeiro, construindo uma grande carreira profissional. Voltara
à cidade natal pelas mãos de seu velho amigo, então vice-presidente da RTN,
sendo contratado a peso de ouro. Papai orgulhava-se de tê-lo em seu quadro de jornalistas,
sem esconder a profunda admiração por seu trabalho, comentava que sua
competência pagava cada centavo do alto salário a ele conferido. E até o
convidara algumas vezes para apresentar um programa só seu. O que finalmente
estava conseguindo. Tancredo achava até então que não era o momento certo. Quanto
a mim, adorei conhecê-lo.
Logo que papai e Tancredo saíram do
escritório, tratei de me antecipar à sala, sem que eles percebessem a minha
presença. Parecia mais uma fã deslumbrada com seu ídolo. Não podia negar ser
ele uma figura interessante, um homem bonito. No fundo, a gente acaba
mitificando muitos artistas ou figuras públicas, por conhecer parte de suas
vidas, de seu trabalho e até de sua intimidade, e considerá-los inacessíveis,
distantes de nossa realidade, mesmo nos identificando e os admirando, como
deuses do Olimpo.
Ouvi os dois falando de uma menina, um
sequestro. Ah, talvez a história que papai me contara sobre sua amiga Júlia
Serrado. Sim, Tancredo Flores parecia estar investigando o caso. Na certa trazia
alguma informação ou novidade. Ao se despedirem, pude acompanhar por uma
janela, o repórter se direcionando ao estacionamento de nossa casa. A sala de
estar de nossa casa ficava no lado mais alto do terreno, contrário ao
estacionamento, permitindo-me uma visão ampla do local. Ele destravou o carro
com o controle do alarme, apanhou um objeto no chão que pareceu ter caído de
sua mão, talvez uma caneta, entrando em seguida no veículo. Alguns segundos se
passaram até a partida do motor. Pude ouvi-lo engatar a marcha à ré. Em pouco
tempo o corola prata deixou os jardins de nossa casa nas Dunas.
Será que eu o encontraria mais uma vez?
Durante tantos anos em que Tancredo Flores trabalhou para a RTN, fora a primeira
vez que esteve em nossa casa. A pesar de papai tratá-lo como amigo, parecia ser
um homem reservado. Bom, se não nos visitasse mais, por que então disse-me que
poderíamos conversar e trocar ideias? Era do conhecimento de todas as pessoas
minha falta de costume de sair de casa. Se ele não fosse até nós, certamente
nunca mais nos veríamos.
Trocar idéias? Que ideias teria um
repórter do porte de Tacredo Flores a trocar comigo? Será que ele pensava em
escrever um livro, uma biografia ou coisa parecida? Sim, era na única coisa que
eu poderia lhe ajudar. Isso se realmente ele precisasse. Afinal, como um grande
repórter, escrever com certeza não lhe seria um problema. Então o quê? Gostei
de ouvir aquilo e desejava saber mais. Morri de curiosidade depois de sua saída.
O que ele quis dizer com aquilo?
“Podemos
então depois conversar, trocar idéias.”
CAPÍTULO 04
Encontrava-me
cheia de idéias para a nova temporada da série Tente Outra Vez.
Apresentaria o projeto a papai e Pedro Lucena dali a alguns dias. Conseguira
marcar uma reunião com os dois entre o natal e o réveillon, mesmo estando Pedro
se recuperando do atentado na estrada do Porto das Dunas. Estava confiante em
convencê-los a permanecer com a empreitada semanal no horário nobre da RTN.
Acordei
cedo, antes mesmo de Dulce levantar. Ao sair do meu quarto vi que a porta da
sala das espadas estava entreaberta. Tratava-se do refúgio de papai, o lugar
onde se escondia da roupagem de grande empresário e saboreava seu hobby.
Iniciara sua coleção de espadas há quase quarenta anos e há poucos anos havia
transformado dois quartos de hóspedes num imenso salão para ostentar cada uma
de suas peças. Já eram centenas, de todos os modelos e tamanhos, vindas de
várias partes do mundo. Algumas, verdadeiras jóias. O poderoso Leonardo Gondim
não poupara tempo nem dinheiro para constituir seu arsenal de espadas, o qual
chamava de acervo, sua verdadeira paixão.
Fui
surpreendida pela presença de Tancredo Flores debruçado sobre uma das gôndolas no
meio do salão que ostentavam uma belíssima peça de aço fundido. O que ele fazia
ali tão cedo, e em um ambiente tão íntimo de papai? Aparência impecável, trajava
um blazer de camurça caqui sobreposto a uma camisa solta azul escuro. Parecia
deslumbrado com o que via.
-
Bom começarmos o dia apreciando tamanha beleza. – Cortou ele o silêncio do
salão, deixando claro que havia percebido a minha entrada, ou melhor,
demonstrando sua atenção aguçada de um bom repórter investigativo. – Bom dia. –
Voltando-se a mim.
-
Bom dia. – Respondi meio desconcertada. – Pensei encontrar papai aqui.
-
Estava aqui há pouco. Recebeu um telefonema, saiu para atender. – Uma pausa. -
É um lugar impressionante. – Declarou, correndo a vista por quase todo o
espaço.
-
É. Pensado em detalhes por papai.
-
Um ambiente digno de um grande museu.
-
Talvez seja uma forma de reconhecimento a esta grande paixão que ele tem.
-
Um colecionador de espadas. Não poderia imaginar. Para muitas pessoas chegaria
como pura ostentação. – Completou, fitando um imenso vitral que montava a
imagem do Arcanjo Miguel ao centro, trazendo um estilo gótico à arquitetura
moderna do salão.
-
Uma crítica?
-
Um ângulo diferente de percepção.
Aquele
ambiente reunia muitos milhões de dólares, uma fortuna incalculável, segundo
papai. Por isso fora arquitetado um sistema de segurança especial equipado com
câmeras de alta sensibilidade, alarmes, fechaduras eletrônicas e blindagem de
portas e paredes. Se Tancredo fosse um crítico socialista tanto dinheiro
investido num hobby seria uma violência aos seus princípios ideológicos.
-
E para você, como chega? – Não perderia a oportunidade de saber.
-
Diria que Leonardo Gondim tem uma sensibilidade rebuscada para o belo. –
Oportuna saída, sem se comprometer. – Reunindo bom gosto, mania e dinheiro,
temos uma sala do Louvre no sótão de nossa casa.
-
Para alguns povos a espada simboliza o poder.
-
Certamente para Leonardo Gondim também. – Senti certa aspereza em seu tom.
-
O que quer dizer? – Parecia organizar sempre um subtexto por trás de tudo o que
preferia.
-
Seu pai disse-me exatamente isso logo que entramos aqui. – Boas saídas. – E
você, o que acha? Como enxerga o “acervo” de seu pai? – ressaltou a palavra
acervo, com um tom que se confundia entre brincadeira e ironia. O que e deixou
intrigada. Tancredo Flores parecia apreciar a coleção de papai e ao mesmo tempo
questionar a sua iniciava, como se fizesse uma leitura negativa de todo aquele
universo revelado na aquisição de cada peça.
-
Papai é realmente um homem excêntrico. – Procurei naturalizar. – Não é uma pessoa
de muitas paixões.
-
Para sua sorte vive a qualidade naquilo que sente. – Mais uma colocação
duvidosa. Não sabia se era um elogio ou uma crítica. Voltou-se para a peça que
apreciava quando entrei. – Veja essa aqui, por exemplo. Disse-me tratar-se da
espada de Alexandre, o grande. Você acredita?
-
Ele a arrematou num leilão na França. Não sabemos ao certo de sua procedência.
Mas foi vendida como tal.
-
Talvez tenha pago pelo mistério.
-
O valor é sempre abstrato. Trata-se de um reconhecimento daquilo que
acreditamos. O que torna as coisas, as situações mágicas.
-
Como este momento?
O
que queria dizer com aquilo? Falava de estar ali diante da beleza de tantas
peças, ou por estar comigo naquele diálogo perceptivo? Cada palavra proferida
escondia um significado não dito, como se me perscrutasse.
-
Como todos os momentos em que estejamos realmente presentes, vivendo o convite
do instante.
-
“Esta é a mágica diária que proporciona à nossa vida muito mais sentido.” –
Reproduziu uma frase minha de meu livro Entre o Amor e as Drogas. O que
me fez corar.
-
Mas o que o traz aqui tão cedo? – Desconversei, procurando me refazer.
-
Uma reunião com Leonardo sobre um novo projeto. Ele insiste que eu comande um
programa só meu.
-
Algum problema?
-
Não diria problema. Mas temo qualquer coisa que amarre o meu movimento, que
limite a minha atuação de alguma forma.
-
Seria interessante para a emissora imprimir a identidade de Tancredo Flores num
programa investigativo. Os telespectadores adorariam.
-
Você, gostaria? – Sua abordagem direta traduzia um estilo próprio de fazer
jornalismo que o deixara famoso.
-
Sim, gostaria. – Resolvi imprimir o mesmo estilo em minha fala.
-
Isso é significativo.
-
E por quê?
Ele
sorriu.
-
Ouvir a opinião sem rodeios de um telespectador.
Poderíamos
conversar durante horas. Um papo inteligente e instigante. Trocamos idéias até
a volta de papai. E antes de deixá-los, marcamos um café. Um café? Quase nunca
saía de casa desde o acidente. E Tancredo não precisou insistir muito. Pouco
depois do natal, ele passou para me pegar certa tarde. Precisei tolerar as
brincadeiras e insinuações de Dulce acerca daquele encontro. A primeira vez em
que era convidada para sair com um amigo depois de seis anos. O que me
proporcionou novos ânimos.
As
conversas fluíam naturalmente, uma coisa puxava outra. Falávamos de tudo. Ele
havia percorrido o mundo e partilhava sobre suas viagens e algumas dificuldades
e perigos enfrentados em seu trabalho. Realmente era perigoso ser um repórter
investigativo, estar exposto a ambientes ilegais, a situações desafiadoras
permanentemente, denunciar uma realidade paralela e adversa à sociedade, bem
como seus autores, fazendo-os conhecer pelo mundo. Experimentava o perigo bem
de perto e parecia alimentar-se daquela sensação.
“Minha missão é descobrir um universo
desconhecido e levá-lo ao conhecimento do mundo.”
Dizia
ele, triunfante, como a fala de um herói.
Senti
vontade de escrever a respeito, de conhecer mais daquele universo, do que
motivava aquele homem a enfrentar o perigo permanentemente, e criar acerca de
uma realidade por mim ainda desconhecida. E antes que fosse embora, consegui a
promessa de Tancredo Flores de me ajudar em meu intento e servir de inspiração.
Seria ainda uma pesquisa, que futuramente se transformaria, com certeza, em
história.
Tancredo
e eu passamos a nos encontrar frequentemente. A idéia era que ele partilhasse
de suas aventuras, de sentimentos relacionados aos casos por ele desvendados,
de intenções e experiências vividas em seus quinze anos de profissão-perigo.
Inicialmente, ele mesmo se fazia presente em nossa casa, onde ficávamos horas
no jardim, recordando os casos, as pessoas. Depois teve a idéia de sairmos
dali. E com certa resistência, acabei por aceitar o desafio de utilizarmos
outros lugares como cenário de nossas entrevistas. A casa de praia de Pedro
Lucena, no Porto das Dunas, nos acolheu por umas duas vezes, bem como a
propriedade de papai, na Serra de Guaramiranga, lugar onde quase nunca
visitávamos. Outra vez, fomos a um complexo, no Morro Branco, uma proposta em
estilo indígena. Um lugar lindo, com uma praia maravilhosa.
A
cada encontro com Tancredo Flores, sentia-me mais viva, com ainda mais vontade
de vencer as sessões de fisioterapia e não mais depender de ninguém. O que
resultou em muitos progressos em meu tratamento. Aos poucos, conseguia me movimentar
e falar com maior desenvoltura. Mais do que nunca desejava estar bem,
recuperar-me totalmente, e ele, certamente, estava tendo uma grande parcela de
contribuição naquele processo.
Vencia
a mim mesma, embora o encontro com Pedro Lucena e papai naquele final de 2009,
tão importante à minha recuperação, como eu mesma o considerava, tenha sido uma
grande surpresa.
CAPÍTULO 05
Minha
vida seria definida naquela conversa com papai e Pedro Lucena. No início de
dezembro o vice-presidente da RTN já havia partilhado seu pensamento acerca do
futuro da série Tente Outra Vez. A ideia era de finalizarmos o programa
após três anos de sucesso para não cansarmos a fórmula. E Pedro gostava sempre
de novas empreitadas, novos desafios.
Reunimo-nos na varanda de nossa casa,
num café da manhã. Aproveitamos um momento em que minha irmã não estive
presente. Maria Eugênia sempre fora contra o meu trabalho como autora da série,
como era contra a minha presença em sua vida. Deste modo, não seria bom a sua
participação naquele momento.
Papai preferiu que Pedro iniciasse o
assunto.
- Celina, você sabe que a televisão é
rápida, é dinâmica. – Afirmou tomando um gole de café. – Nós precisamos pensar
em inovações o tempo inteiro.
- Tudo pela audiência. – Completei de
modo inflamado.
- Também. – Respondeu Pedro
tranquilamente. – A concorrência é grande, e você sabe disso. Não é fácil nos
mantermos entre as primeiras colocadas em audiência, Celina. Principalmente por
não fazermos parte do eixo Rio-São Paulo, como todas as outras grandes
emissoras. Seu pai construiu um império de comunicações aqui em Fortaleza, por
mais que a maioria de nossos programas seja produzida em nossos estúdios no Rio
e em São Paulo, o mercado publicitário ainda dispensa à Rede de Televisão
Nacional, por ser um canal cearense, muito preconceito. E hoje a nossa marca
maior é a inovação, uma forma de driblarmos esse preconceito.
- Uma marca consolidada por Pedro Lucena
depois que assumiu a vice-presidência da RTN. – Complementou papai. Ele tinha
uma profunda admiração por seu trabalho. O que me levava a imaginar que seria
difícil aquela conversa.
- Vamos então ao que interessa. –
Procurei adiantar. – Tente Outra Vez não estará na programação 2010 da
RTN, correto? – Segurei firme para não chorar.
- Exatamente. – Foi Pedro Lucena quem
respondeu, simples assim. Era a minha vida que estava em jogo, não a dele.
- Nós temos outros planos para você,
querida. – Papai tentou cuidar de mim, percebendo a frustração em meu olhar.
- Nada mais me interessa. – Fui
categórica. Lembrei de Maria Eugênia e o quanto ela tentara acabar com a minha
felicidade, com a minha vida em todos os anos em que convivemos, desde a morte
de minha mãe e que fui morar com eles. Ela tudo fizera para impedir que eu
assumisse a chefia da equipe de redatores da série, e depois do programa permanecer
o ar. Naquele momento Pedro e papai fariam exatamente o que minha irmã tanto
desejara.
- Nós precisamos muito de você, Celina.
– Colocou Pedro, desconsiderando minha negativa.
- A série vinha dando sentido à minha
vida, Pedro. Tratar da deficiência, da dor de nossa condição, da visão das
pessoas a nosso respeito, do preconceito e de como isto chega até nós,
trouxe-me de volta,você melhor do que ninguém sabe do que estou falando. E
muito me admira. Mas isso não conta, não é? O que conta é o mercado, é a
audiência. – Falei aquilo olhando para o meu pai. Achei que ali estava presente
apenas Leonardo Vieira Gondim, o grande e poderoso empresário cearense, e não a
figura simples de meu pai.
- Ouça o que Pedro tem a lhe dizer,
querida. – Pediu ele, com um olhar de ternura, pousando a xícara de café no
pires.
- Não necessito de pormenores. Pra mim
já está de bom tamanho. – As lágrimas já não podiam mais ser contidas. Enxuguei
meu rosto e procurei levantar, mesmo que ainda com dificuldade.
- Precisamos de uma boa escritora para
assinar a próxima novela da RTN que já inicia em maio próximo. Você é esta
pessoa, Celina. – Disparou Pedro, antes que eu desse as costas.
Maio? Novela?
- Como? – Não acreditei no que ouvi. Cuidar
de um capítulo semanal era diferente de dar conta de seis semanais. O horário
de novelas era o principal programa da emissora, responsável pela maior
audiência diária, além de ser um investimento milionário. Se fosse um fracasso
poria em risco a própria empresa como um todo.
- Isso mesmo que você ouviu, Celina. –
Retificou o vice-presidente da RTN. Tenho uma ideia de história e quero que
você a escreva, torne-a real.
Voltei meu olhar para papai, procurando
compreender se ele estava de comum acordo. Seria muita responsabilidade. Há
quase dez anos eu havia escrito uma novela, mas naquela época a expectativa de
audiência não era tão grande. Não me sentia competente o suficiente para
assumir tamanha responsabilidade. Significava pelo menos doze horas de trabalho
diário.
- Por isso nós queremos que você encerre
a série Tente Outra Vez agora. Os planos que temos para você são bem
maiores. Até porque o recado que nós queríamos passar com este seriado já foi
dado.
- Não precisamos ficar batendo na mesma
tecla, Celina. Existem outras formas.
Bem a cara de Pedro Lucena realmente,
querendo descobrir novos caminhos, investir em novas empreitadas, fazer coisas
diferentes. E papai o apoiando em tudo, como de costume. Mas daquela vez eu
achava que eles passavam dos limites. Estavam em questão mais de cinquenta
milhões de reais só em relação à produção da novela, fora o complexo jogo
publicitário, que punha em cheque o futura de toda a emissora. Uma novela
movimentava na RTN algo em torno de trezentos milhões de reais, um valor que se
aproxima da própria dívida da empresa, ameaça permanente à existência da rede
de televisão cearense.
- Vocês estão loucos? – Parecia uma
brincadeira.
- Por ser louco eu sou hoje um dos
maiores empresários deste país. Pra mim não bastou o Ceará, querida. – Explicou
papai orgulhoso. – Você não pode ficar presa para o resto de sua vida a um
único trabalho.
- Existe aí muito talento, Celina. Nós
não podemos suprimi-lo. – Completou Pedro.
- É muita responsabilidade. – Tentei
explicar, voltando a me sentar.
- Por isso é você e não outra pessoa. –
Replicou o meu amigo.
- Há muita profundidade no seu texto,
querida. – Declarou papai, segurando minha mão. – Claro que há mais tempo para
escrever um capítulo semanal, tendo ainda a colaboração de outros autores.
- Mesmo num texto diário eu tenho
certeza que você trará esta profundidade, agregada de sua sensibilidade. –
Pedro complementou.
- E você pode trabalhar com quem quiser.
Inclusive se desejar permanecer com sua equipe atual de escritores, tem total
autonomia e apoio do departamento de teledramaturgia da RTN. Trabalhe com quem
você quiser.
- Sinceramente, eu não sei onde vocês
estão com a cabeça. Eu não tenho condições.
- Você sempre ressaltou a minha ousadia,
não irresponsabilidade. – Pedro ainda brincou. – Inclinou-se para mim, fitando
meus olhos, trazendo o mesmo sorriso entusiástico de sempre. Eu estou cheio de
ideias, Celina. E preciso de uma pessoa que agregue a sua sensibilidade e
profundidade ao mesmo tempo para torná-las reais, entende?
- Não vejo outro nome que não Celina
Gondim. – Disparou papai, com largo sorriso.
- E do que se trata? – Finalmente
perguntei.
Pedro abriu o sorriso, sentindo-se quase
vitorioso.
- Pensei que não perguntaria. – Revelou
ele.
- É algo completamente novo. – Papai adiantou.
Aquela conversa me trouxe realmente
muitas surpresas, tanto que esqueci momentaneamente a extinção do seriado. Há
poucos anos eu não passava de uma ex-escritora, condenada à morte de sua
expressão numa cadeira de rodas, pela difícil condição imposta pelo destino de
tetraplégica, uma ex-drogada que levou família e amigos ao sofrimento durante
anos. E de repente, depois de voltar a andar, recuperando a maior parte de meus
movimentos, mesmo que ainda com dor e dificuldade, tinha a chance de
reconstruir a minha vida, recebendo a maior prova de confiança que meu pai e
Pedro Lucena poderiam me dar. O futuro da própria RTN estava completamente em
jogo. A dívida que ultrapassava os setecentos milhões de reais, constituída ao
longo dos anos por conta da política de crescimento utilizada pela empresa, a
fim de transformar um canal local numa grande rede de televisão nacional,
ameaçando a audiência dos maiores canais do eixo Rio-São Paulo, impossibilitava
a emissora de se aventurar em projetos de riscos. Nada poderia dar errado, o
que representava uma perigosa gangorra entre a manutenção e a falência do império
televisivo cearense.
Nunca um empresário de Fortaleza fora
tão ousado quanto papai. Leonardo Vieira Gondim era reconhecido em todo o país
como um visionário, quebrando a regra das grandes redes de televisão serem
sediadas na região Sudeste. Iniciara a RTN há treze anos, depois de vender a
sua parte na WM, uma das maiores agências de publicidade do Nordeste,
que havia sido constituída vinte anos antes em sociedade com o famoso
publicitário brasileiro Willames Macena, que viria a ser seu genro, casando com
Maria Eugênia, anos mais tarde. A rede cearense levava seu primeiro programa ao
ar em maio de 1996, na época com apenas quatro canais próprios em Recife,
Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, e mais quatro emissora afiliadas no Rio
de Janeiro, Curitiba, Vitória e Belém do Pará. Assim, nascia a Rede de
Televisão Nacional, levando a todo o território brasileiro uma programação
genuinamente nordestina.
A ambição levou papai a conseguir
inúmeras injeções financeiras de bancos e do Governo, transformando a RTN aos
poucos numa emissora de programação nacional. Inúmeros profissionais de renome
passaram a ser contratados a peso de ouro, vindos de grandes emissoras
concorrentes, como apresentadores, jornalistas, até a constituição do
departamento de teledramaturgia e a inauguração do horário de vinte e três
horas como o seu horário fixo de novelas, produzindo grandes sucessos que
alavancou a audiência do canal cearense para os primeiros lugares, proporcionando
respeito e reconhecimento no mercado publicitário nacional.
A dívida da RTN era para mim
desconhecida até o momento em que estava prestes a iniciar o trabalho no
seriado. Maria Eugênia trouxe-me todas as informações em detalhes como meio de
me convencer a desistir da empreitada, a fim de não por em risco o projeto grandioso
de papai. Segundo ela, a série era uma proposta de risco e poderia representar
o fracasso da emissora junto ao mercado publicitário. Evidentemente que minha
irmã desejava me ver fora de seu território, sua empresa, como ela mesma a
chamava, nunca aceitara a minha presença e de minha mãe na vida de nosso pai, e
tudo fazia para destruir a minha vida. Como a vez em que a flagrei partilhando
com sua fiel secretária o intuito de transformar o que restara de minha vida
num inferno até resultar em meu suicídio.
Revelar-me o segredo de papai, até então
escondido também da mídia, era uma forma de Maria Eugênia Gondim garantir a
minha distância de seu caminho. E por pouco não caí em seu jogo manipulador,
desistindo do retorno ao universo profissional e de minha própria recuperação
física.
Novamente eu me via numa situação de
complexa escolha. Por mais que papai, com sua enorme experiência empresarial e
filem televisivo, e o próprio Pedro Lucena munido de uma capacidade inovadora
impressionante e sensatez profissional sem limites, depositassem confiança e
admiração em meu trabalho, eu temia a empreitada e o risco de um fracasso,
comprometendo a existência de tudo o que fora construído por meu pai com tanto
esforço.
Pedro e papai esperavam uma resposta
logo após o réveillon de 2010. Parecia ter acontecido um grave problema na
produção da novela prevista a estrear em maio daquele ano, e uma nova proposta
precisaria ser implementada a tempo, substituindo meses de trabalho já desenvolvido.
A ideia original do vice-presidente da RTN teria este papel, e eu seria a sua
autora, segundo ele.
Preferi, no entanto, que aquele convite
não tivesse sido feito a mim, assim não me sentiria responsável por nada, nem
por um possível fracasso da empreitada. Desejei apenas continuar com a série Tente
Outra Vez, um projeto já conhecido e consagrado na programação do horário
nobre na emissora, sem muito dele depender o futuro da empresa de meu pai.
Teria eu condições de me lançar na
aventura ao lado de Pedro Lucena e assinar sozinha a nova novela da RTN? Aquele
seria um início de ano diferente, desafiador.
CAPÍTULO 06
Muita
coisa nova acontecia em minha vida naquele ano de 2010. Depois de tanto tempo
reclusa na mansão de nossa família, sem contato nenhum com amigos, limitada a
uma cadeira de rodas, começava a construir uma nova amizade. O jornalista
Tancredo Flores se mostrava interessado em escrever um livro sobre suas
aventuras como repórter investigativo e havia me convidado a ajudá-lo nesta
empreitada. Ele queria transforma o projeto num romance e por isso acreditava
que eu podia contribuir com minha experiência. Na verdade, apenas eu não
acreditava. Era como se a vida me empurrasse o tempo inteiro para expressão
plena de minha arte e eu insistisse em duvidar de meu contato com esse universo
mágico da criação. Tolice a minha!
Tancredo e eu passamos a realizar
diversos encontros em que falávamos de suas viagens, pesquisas, investigações e
perigos enfrentados na reportagens. Aos poucos íamos compondo o personagem
principal da história, inspirado em sua personalidade, mas com características
diferentes naquilo que ele desejava transformar em sua vida. Dizia ele estar
curando suas dores, transformando seus defeitos através do herói de nossa
trama.
Tancredo e eu passávamos horas
conversando, viajando nas nuanças de suas experiências e personificando o
repórter de seu livro, a obra que ele dizia ser nossa. Ríamos muito juntos,
pensando os detalhes da história, criando um roteiro. E a cada encontro, eu
sabia mais daquele homem, ia conhecendo suas preferências, suas posições
ideológicas, entrando em contato com sua intimidade. Uma personalidade firme,
totalmente destemido do perigo, capaz de arriscar a própria vida para tornar
conhecida a verdade.
“A verdade pode ajudar as pessoas. Isso
não tem preço. É isso que me move!”
Tancredo falava aquilo de uma forma tão
envolvida que me encantava. Como se fosse ele um missionário.
- Por que você nunca casou?
Ele calou diante de minha pergunta,
parou um pouco e respirou fundo.
- A gente precisa responder isso para
compor esse personagem? – Procurou saber com um tom sério. O que me deixou meio
embaraçada. Será que eu havia perguntado realmente por conta do livro? Tancredo
era um homem tão interessante, bonito, inteligente, um profissional de sucesso,
e além de tudo parecia sensível. Como não tinha ninguém?
- Acredito que esse personagem deva ter
uma vida afetiva. – Insisti, focando em nosso trabalho. Não queria que ele
percebesse minha curiosidade pessoal. Bobagem, um investigador como ele, na
certa já havia se dado conta.
Estávamos em meu escritório, lugar em
que criei a maioria de minhas histórias. Aqueles paredes guardavam muitas
aventuras fictícias. Tancredo tomou um gole de café, pôs a xícara de volta no
pires, e se levantou da mesa. Foi até a janela que dava para o jardim de nossa
casa. Dali, se olhássemos um pouco acima, podíamos ver um parte pequena do mar
da Praia do Futuro. Aquela janela me inspirava.
- Há alguns anos eu conheci uma mulher
com quem pensei em passar o resto da vinha vida. Ela fazia parte de uma
reportagem. Nós nos apaixonamos loucamente. Mas um tempo depois eu descobri que
ela havia sido o grande amor da vida de um amigo meu.
Houve um pouco de silêncio, como se
relembrasse a história.
- E o que aconteceu? – Antecipei-me para
que não desistisse de continuar.
- Não tinha como prosseguir. – Voltou-se
a mim. – Eu sabia do quanto ela havia sido importante para esse amigo. Não era
possível dar continuidade àquele romance.
- Você terminou com ela por causa do seu
amigo?
- Celina, amizade é uma das coisas mais
sagradas que existem para mim. – Aproximou-se novamente, fitando-me bem os
olhos. – Os romances vêm e vão, as paixões incendeiam a nossa alma e se apagam,
a amizade sempre permanece. Pode passar o tempo que passar, mas ela sempre vai
estar ali.
- Por causa dela você nunca se casou com
ninguém?
- Da amizade?
- Não. – Sorrimos. – Falo da mulher que
foi o grande amor desse seu amigo. Foi por causa dela que você nunca se casou?
- Não, da amizade.
- Como assim?
Ele sentou-se, tomando novamente a
xícara de café.
- Depois dela digamos que eu tenha
conhecido algumas pessoas especiais.
- E...
- Exatamente por serem pessoas especiais
eu não quero perder aquela magia como comumente acontece com todos os
relacionamentos amorosos. Então eu prefiro ressignificar.
- Como assim, ressignificar?
- Prefiro transformar logo em amizade,
que para mim é sagrado.
Eu estava entendendo bem?
- Tancredo, eu acho que não
compreendendo. Você termina todos os seus relacionamentos com medo que acabem,
é isso?
Ele sorriu.
- Não é bem assim. Digamos que é para
não nos perdermos um do outro. Como eu falei, amizade é sagrado, para sempre. Assim,
eu tenho essas pessoas especiais para sempre em minha vida, compreende?
- Mas desta forma você nunca vai
encontrar ninguém com quem possa dividir uma vida em comum.
- Pelo contrário, hoje tenho muitas
pessoas especiais em minha vida.
- Mas como amigas somente.
- O que é sublime.
- E você não sente falta?
- Às vezes sim, mas acabei me
habituando. Então hoje qualquer relação em que eu perceba que começa a
ultrapassar a fronteira da amizade, eu prefiro não prosseguir. Assim, evitamos
futuros desgastes e sofrimentos.
- Então você não se permite amar?
- Claro que sim. Mas não desta forma.
- É como se você fosse um celibatário!
- Não é bem assim. Isso não inclui
sexo.
Então sexo pode, sem compromisso. Estava
completamente chocada. A única coisa que não me encantou em Tancredo Flores. Na
verdade, que havia me desencantado. De longe todo mundo é normal, já dizia a
minha enfermeira Dulce. E eu que pensava que detinha as maiores patologias!
Era uma forma de Tancredo perpetuar as
relações, por medo de perder aquelas pessoas às quais considerava especiais em
sua vida. Por isso transformava todas as suas histórias amorosas em amizade. O
que me deixou com um estranho sentimento de decepção. Ele parecia perfeito, o
homem que toda mulher gostaria de ter. O homem que eu gostaria de ter? Talvez
sim. Vinha me empolgando em nossos encontros, encantando-me com seu charme. Naturalmente
galanteador e cuidadoso, Tancredo sabia como agradar uma mulher, e trazia
sempre uma certa magia em nossos momentos de criação. Mas era apenas amizade!
Amizade? Senti-me uma tola por me abalar com aquela descoberta. Aquilo apenas
comprovava que o personagem Tancredo Flores, o famoso repórter investigativo
conhecido em todo o país, era uma pessoa normal, com medos e inseguranças como
qualquer um de nós.
Ora, se eu tinha dificuldade de me
desapegar das coisas, das pessoas, do que eu criava, como dizia Pedro Lucena,
Tancredo Flores então escolhia a solidão a ter que enfrentar a verdade de um
relacionamento amoroso, na tentativa de garantir a presença permanente de todas
as pessoas por quem se envolvia em sua vida.
Por que a minha decepção afinal? Em
alguns momentos, achava que Tancredo desejava estar comigo não apenas pelo
livro, mas por minha companhia, assim como eu sentia a seu respeito. Naquele
momento eu percebia que não. Bom, mas uma coisa não negava a outra. Podia ele
desejar sim mais que falar sobre trabalho, querer verdadeiramente a minha
amizade, o que vinha se construindo sim aos poucos. Mas não era o suficiente.
Por alguns instantes, desejei que fosse mais que amizade o seu interesse por
mim. E por que não? Se ele mesmo afirmara diversas vezes que eu era
interessante, poderia sim envolver-se, desejar-me como mulher. Bom, mas depois
daquela revelação, era claro que não, que Tancredo não me desejava como mulher,
apenas como amiga. Não que eu o desejasse, mas era bom pensar que ele poderia
estar interessado em mim.
Cheguei a chorar diante do espelho de meu
quarto, lembrando de inúmeras vezes em que me arrumei mais que o habitual para
recebê-lo. Tudo fantasia. Maria Eugênia tinha toda razão, como uma aleijada
podia chamar a atenção de um homem tão bonito? Certamente muitas mulheres
interessantes e belas despertavam o desejo de Tancredo Flores, não uma pessoa
que ainda falava e andava com dificuldade, uma ex-cadeirante como eu,
afirmou-me ela, como fazia costumeiramente ao me ver feliz. Mas daquela vez
minha irmã estava coberta de razão.
Como fui idiota! Se ainda dispusesse de
minha casa dos anjos pediria para sumir.
CAPÍTULO 07
Preferi
evitar os últimos encontros marcados com Tancredo Flores para trabalharmos no
livro que ele escrevia acerca de suas aventuras como repórter investigativo.
Liguei inventando algum contra tempo, assim não confundiria mais a nova amizade
ou relação profissional com qualquer possibilidade de romance. Talvez minha
carência tenha me feito fantasiar a seu respeito, que ele pudesse estar
interessado em mim. Ilusão boba de uma pessoa que há muito não se envolvia com
alguém. Para ele não passava de uma nova amiga.
Restava-me a dedicação completa ao novo
e ousado projeto da RTN, por insistência de papai e seu mentor Pedro Lucena. Trabalhava
noite e dia na sinopse da novela idealizada pelo vive-presidente da emissora, a
fim de apresentar a proposta em pouco mais de uma semana. Tínhamos o tempo
resumido pela estreia da produção marcada inicialmente para maio, adiada para
junho a muito custo, depois de conseguirem esticar em vinte quatro capítulos a
novela atual. O que se configurava num grande risco à RTN, tendo em vista o
valor milionário do trabalho.
Maria Eugênia tudo fizera para me
impedir de estar à frente da empreitada, assim como na época da série Tente
Outra Vez. Para ela, novamente eu invadia seu espaço e punha em risco seu
patrimônio. Mobilizando diversas reuniões com a diretoria da emissora, apoiada
pelo ex-marido e diretor comercial da empresa Donato Pessoa, numa guerra
declarada contra mim. Defendia a contratação de um grande nome como autor da
novela, o que, segundo ela, traria mais vantagens e garantiria uma boa fatia do
mercado publicitário para o trabalho. Pedro por sua vez era contundente, e
apostava em meu nome trazendo a profundidade e delicadeza que a história
exigia.
Certamente a confiança de papai no tino
profissional de Pedro Lucena o fizera comprar essa briga a meu favor e decidir arbitrariamente
por mim como autora responsável pela super produção que sua rede de televisão implementaria
a partir daquele momento.
Em meados de fevereiro entreguei a
proposta ao vice-presidente da RTN. Pedro lia atentamente cada uma das laudas.
Em seu rosto, nenhuma expressão que denotasse o que estava achando, o que me
deixou ainda mais nervosa. Se não fosse o que ele esperava? Dispúnhamos de
pouco tempo para mudarmos qualquer coisa que fosse. Desde quando havia aceitado
o desafio do meu velho amigo no início do ano, sabia que era acertar ou
acertar. Não existia alternativas, pelas circunstâncias da produção.
Caso o projeto não estivesse dentro do
que Pedro esperava, significava a contratação de mais autores urgentemente, o
que de certa forma representava o meu fracasso em atender a confiança
depositada em mim por ele e papai. Mordia os lábios de tão nervosa, aguardando
qualquer reação ou comentário do criador daquela ideia.
- Perfeito!
Ouvi bem aquilo?
- O que você disse, Pedro?
- Perfeito. – Repetiu o vice-presidente
da RTN.
- Perfeito o quê? – Era como se não
compreendesse.
- O seu trabalho é perfeito, Celina. É
exatamente o que eu queria. – Confirmou de forma categórica, sorrindo, já
celebrando o meu feito.
- Você está me dizendo que gostou? – Não
conseguia acreditar.
- Claro. – Passou as mãos pelos cabelos.
– Não poderia ser outra pessoa, Celina.
Tive vontade de chorar. Eu mesma não
acreditava que fosse possível. Sonhei diversas vezes naquelas semanas que Pedro
reprovaria a sinopse e contrataria novos autores para o trabalho. Recordei-me
dos anos em que fiquei presa à cadeira de rodas, totalmente refém da condição
de tetraplégica, desacreditada do mundo, da possibilidade de criar, de me
considerar viva novamente. E de repente, transformava-me novamente na escritora
Celina Gondim, primeiro com a série Tente Outra Vez, e agora retornando
às novelas.
- Então posso começar a escrever?
- Deve, hoje mesmo. Não vejo a hora de
estar com as laudas do primeiro capítulo em mãos. – Aproximou-se de mim,
fitando meus olhos. – Celina Gondim, nós produziremos o maior sucesso da RTN de
todos os tempos.
E rimos juntos.
AMAZONA
Era o título provisório da trama. Uma
história idealizada por Pedro Lucena que trazia como pano de fundo as lendas da
Amazônia, além das riquezas da flora e fauna da maior floresta do mundo. Ambientada
nas mais belas paisagens de nosso país. Beleza, paixão e poder seriam os temperos
de minha mais nova obra.
A novela contaria a historia de Sara
Mourão, a jovem filha de um garimpeiro, que depois da morte do pai, viaja em
busca das terras roubadas de sua família por um rico fazendeiro, no meio da
Floresta Amazônica. Ela só não contava em se apaixonar por seu maior inimigo e
ainda despertar o amor de seu filho, vindo de Manaus, formando o principal
triângulo amoroso da trama. Moça valente que acaba liderando um grupo, na luta
contra a arrogância e o poder do homem por quem está completamente apaixonada,
transformando-se numa grande heroína. E ainda lendas como a da cobra grande
e do boto certamente trariam um charme todo especial à história, que
levaria como título o apelido dado à heroína pelo jovem protagonista,
apaixonado por mitologia grega.
Sessenta personagens constituiriam a
mais nova empreitada do canal de televisão cearense para o horário das vinte e
duas e quarenta e cinco. Restava-nos a definição do elenco e demais
profissionais da equipe. O que já aconteceria nas semanas seguintes.
A minha nova parceria com Pedro Lucena
estava oficialmente firmada!
CAPÍTULO 08
Evitei
os encontros com Tancredo Flores o quanto pude. Mas não tinha mais o que
inventar, como justificar tantos adiamentos. Vinha alegando ultimamente o
trabalho com a nova novela. Ele, no entanto, insistia.
Creio que já havia passado mais de um
mês depois de nosso último encontro, até me deparar com sua presença na sala de
nossa casa. Tancredo estava de costas, olhando um belo quadro que Maria Eugênia
havia trazido da Europa.
- O que faz aqui? – Estava surpresa.
- Eu também estava com saudades. –
Respondeu, voltando-se a mim, sorridente.
Senti sim muita falta de nossas
conversas, de sua presença, daquele sorriso.
- Desculpe-me, tenho andado bastante
ocupada.
- Compreendo, mas tenho sentido saudade.
– Abraçou-me espontaneamente. E foi tão bom senti-lo perto, por mais que
estivesse desconsertada.
- Ah, só para você saber. Jamais viria
sem avisar. – Explicou.
- Como assim?
- Estou aqui esperando o Leonardo.
Como fui tola, pensei realmente que ele
tivesse ali por minha causa.
- Certamente que sim. E ele, onde está?
- Numa ligação no escritório, já íamos
sair.
- E o livro, como anda?
- Creio que bem adiantado, embora ainda
esperando por sua ajuda.
- Tancredo, é que realmente a novela tem
me exigido tempo integral. Tem sido quase dezesseis horas de trabalho por dia.
- Você não tem uma equipe de co-autores?
- Sim, claro. Hoje não conseguimos mais
escrever sozinhos, é tudo muito rápido.
- E por que tem trabalhado tanto?
- Estava ainda enferrujada. Na verdade,
estou me adaptando à nova realidade. Antes, tínhamos um capítulo semanal para
entregar, agora são sei, de quase quarenta laudas cada um. É muita coisa, sabe?
- Compreendo. Então agora não teremos
nossos encontros tão cedo, não é?
- Pois é. Acho que não.
E como eu lamentava aquilo. Não que eu
não pudesse realmente, mas precisava ser daquela forma. Estava muito envolvida,
ele certamente não.
- E quanto a nós? – Perguntou abrindo o
sorrindo.
O que queria dizer com aquilo? Ou
melhor, o que desejava de mim?
- Como assim, “quanto a nós”, Tancredo?
- Nossa amizade.
Amizade!
- Ah, sei.
- Não seremos mais amigos?
- Claro que seremos. – Desejei falar a
verdade, partilhar os meus sentimentos. Mas como ele mesmo havia me dito,
jamais trocaria uma amizade por relacionamento amoroso. Tolice a minha. –
Apenas estou dedicada a este trabalho.
- Precisa se cuidar, Celina. Desse modo,
acaba pegando uma estafa.
- Na verdade, eu precisava disso.
- Mesmo assim insisto em tomarmos um
café qualquer dia desses.
- Um café? Claro. Por que não?
- Pois é, por que não? – Era como se
quisesse me falar mais alguma coisa. – Podia ser amanhã, por exemplo.
- Amanhã eu não posso.
- Depois de amanhã.
- Tancredo, acho que esta semana não
tenho como.
- Nossa, agora sim estou me sentindo
realmente diante da famosa escritora Celina Gondim, extremamente ocupada, sem
tempo para os amigos.
Nada, queria apenas me proteger.
- Estou apenas me resguardando.
- Como?
Não acredito que falei!
- Quis dizer que não posso me
comprometer com nada, pelo menos agora. – Tentei consertar.
- Podia jurar que você disse que estava
se protegendo de mim. – Instinto de repórter.
- Não, nada disso. – Sorri,
desconsertada. – Proteger-me de que, não é verdade?
Proteger-me dos meus sentimentos a seu
respeito, do meu envolvimento, do seu charme, do desejo contido de
ultrapassarmos a linha da amizade.
- Celina, os nossos encontros estavam
sendo muito importantes para mim.
- Para mim também, aprendi muito com
você e suas histórias.
- Não apenas pelo livro, mas por sua
companhia, por ser uma pessoa encantadora.
Gelei ao ouvir aquilo. Será que aquela
declaração não fazia parte de uma de minhas fantasias? Tancredo havia falado
aquilo mesmo?
- Desculpe, não entendi. – Precisa
confirmar.
- Falo da importância de nossos
encontros. – Aproximou-se. – Eu preciso lhe confessar uma coisa, Celina. – Ele
agora se mostrava meio intimidado.
- O quê?
- Sobre nós. – Meu Deus, o que ele
queria dizer? – Nem sei como falar sobre isso. Mas acho importante para a nossa
amizade.
- Do que você está falando, Tancredo?
- Do que eu vinha sentindo em nossos
encontros.
Será que eu estava errado a seu
respeito, que ele sentia o mesmo que eu?
- E o que você vinha sentindo?
- Talvez eu estivesse confundindo as
coisas.
- Como assim, confundindo as coisas,
Tancredo?
- O que estava acontecendo entre nós ou
dentro de mim, não sei.
- Juro que não estou compreendendo.
- É que estou com medo de falar e
estragar nossa amizade, de você achar que eu vinha agindo de má fé, coisa
assim.
- Por favor, fale.
- Eu vinha meio que confundindo os
sentimentos por você. Pronto falei. – Parecia aliviado pelo desabafo. E eu
completamente chocada, com as mãos trêmulas, o coração acelerado. Imaginava o
quanto fora difícil para ele revelar aquilo, e o medo de perder nossa amizade,
o que para Tancredo era sagrado.
- Pode explicar melhor? – Quase não
consegui falar de tão nervosa.
Tancredo caminhou um pouco pela sala,
baixava a cabeça como se tomasse coragem, e sorria, meio desconsertado.
- É difícil falar de sentimentos.
- Mas precisamos, não acha?
- Tem razão. Isso é uma das coisas que
eu mais admiro em você, em seus textos. Você não apenas fala de sentimentos,
mas os expressa claramente e de um modo tão simples e bonito. Tudo fica cheio
de vida, quando você fala, Celina.
Senti-me tão feliz por ouvir aquilo.
- E sobre os seus sentimentos? –
Insisti.
- Eu estou a...
- Desculpe-me, Tancredo, foi uma ligação
urgente. – Papai nos interrompeu, saindo do escritório. – Olá, filha. Bom dia,
querida.
Olhamos um para o outro, lamentando a
interrupção. Tudo poderia ser esclarecido naquele momento. Finalmente Tancredo
se abriria, falaria de seus sentimentos. Desejei que papai não nos tivesse
interrompido. Quando retornaríamos àquele assunto? À tarde eu viajaria a São
Paulo, para uma reunião com a equipe de produção da novela, onde ficaria por
alguns dias, o que me impediria de nos vermos logo. Tentei então ligar para ele
diversas vezes antes do vôo, tendo todas as chamadas encaminhadas à caixa de
mensagem. E depois, nenhuma ligação, nada de retorno, sem explicações.
Compreendi o silêncio.
Precisava esquecer, tirar aquela
história da minha cabeça, voltar-me totalmente à produção da novela. E foi o
que fiz, conheci na manhã seguinte toda a equipe escalada para o trabalho. Parte
dos profissionais vinha da série Tente Outra Vez, por exigência minha,
os demais foram escalados pelo próprio Pedro Lucena. Aos poucos, víamos nosso
sonho sair do papel e transformar-se em realidade. Era mágico observar todas
aquelas pessoas, profissionais competentes debruçados sobre o meu trabalho,
empolgados, confiantes, desejosos de que tudo fosse um grande sucesso. Naquele
momento eu era inteira, plena e feliz.
CAPÍTULO 09
Precisei
ficar algumas semanas em São Paulo, por conta do andamento dos trabalhos de
pré-produção da novela Amazona. A central de teledramaturgia da RTN
construída na Avenida dos Bandeirantes, numa área de trezentos mil metros
quadrados era um mundo em estúdios, cidades cenográficas, fábrica de cenários,
e diversos artistas da casa transitando nos intervalos de suas gravações. Sentia-me
completamente apaixonada por aquele universo de criações. Na época em que havia
trabalhado para a emissora, antes do acidente, a central ainda não havia sido
construída, e mesmo no período de produção da série Tente Outra Vez não
me sentira movida a conhecer. Cogitei então a possibilidade de me mudar
provisoriamente para a capital paulista durante o trabalho. Seria um modo de
acompanhar tudo de perto, e estar ainda mais inspirada para escrever. Por mais
que sessenta por cento da história fosse gravada no meio da Floresta Amazônica,
estar inserida naquela fonte de criatividade seria uma forma de me envolver
cada vez mais na empreitada, e ficar livre das agressões constantes de Maria
Eugênia, além de esquecer a frustrante relação com Tancredo Flores.
Tivemos algumas reuniões com toda a
equipe de atores e produção da novela, a fim de finalizarmos a construção de
todos os personagens e detalhes da obra. Foram dias seguidos de trabalho,
convivendo com todas aquelas pessoas, respirando exclusivamente o universo de Amazona.
Almoçávamos todos juntos diariamente, no restaurante da própria central,
estreitando ainda mais os laços de amizade, era um modo natural de
estabelecermos uma afinação, integração ou cumplicidade entre todos nós. Certamente
aquilo refletiria no resultado final do trabalho.
No primeiro final de semana após minha
chegada em São Paulo, Pedro Lucena viera de Fortaleza com o objetivo de
conhecer os cenários montados das cenas da trama em estúdios. Estávamos
ansiosos, sentíamos como se fosse uma vitória nossa ver aquele trabalho se
concretizar. Apreciamos cada espaço, cada ambiente com olhar de celebração. A
grande sala da fazenda, onde aconteceria a maioria das cenas, lembrava-me a
infância, os quartos, cozinhas, tudo se fazia verdade diante de nossos olhos.
Fiquei encantada ao entrar no cenário da
capela da fazenda. Era linda, como eu a havia imaginado. Aproximei-me do altar,
onde uma imagem imensa de Cristo Ressuscitado parecia descer do teto. Fui
tomada por um desejo profundo de orar e agradecer por aquele momento em minha
vida. Prostrei-me no primeiro banco, bem diante da imagem, ali agradeci.
Recordei-me de Vinícius me dizendo em sonho para eu ouvir as batidas de meu
coração. Aquele lugar sagrado, mesmo que fictício, os demais ambientes
montados, tudo era resultado de minha escuta profunda ao convite de meu marido.
Chorei de felicidade, grata a Deus por me amparar, mesmo depois de pensar que
havia sido abandonada por Ele, após o acidente. Ainda assim, sentia-me
carregada no colo. E de repente, estava novamente erguida, vivendo um momento
de pura expressão.
- Está tudo bem? – A voz grave veio das
minhas costas. Percebi que não era Pedro. Tratei de enxugar as lágrimas e descobrir
quem testemunhara meu momento de agradecimento. Era Augusto Loureiro, um dos
co-diretores da novela.
- Está sim. – Respondi sorrindo, para
que ele percebesse que não se tratava de nada grave.
- Mas, você estava chorando.
Corei de vergonha.
- Não é nada demais.
- Desculpe se estou lhe invadindo. – Sua
voz era terna.
- Não, de jeito nenhum.
- É que por um momento pensei que você
precisasse de alguma coisa.
- Está tudo bem.
- Desculpa mais uma vez então. –
Insistiu.
- Não se preocupe, está tudo bem
realmente.
- Que bom. Vamos ver o último cenário?
- Sim, claro, estou indo.
Augusto fez que sim com a cabeça e se
retirou, percebendo que eu precisava me recompor. Ele nem imaginava o quanto eu
estava feliz, na verdade ninguém poderia imaginar o que aquilo representava
para mim. A pesar dos comentários maldosos da imprensa, colocando em xeque
minha competência e se referindo a mim como uma privilegiada por ser filha do
dono da RTN, eu sabia que papai e Pedro haviam me escolhido para estar à frente
daquela empreitada por confiarem piamente em meu trabalho, em meu talento. Se o
universo estava sendo generoso em me criar as possibilidades, abrindo as portas
com facilidade, certamente eu vinha sabendo aproveitar e oferecer tudo de mim. Aquela
vivência me convidava a exercitar a crença em mim mesma, em meu potencial,
desconsiderando o que os outros pensavam a meu respeito, como me colocou Pedro
tantas vezes.
No almoço, Pedro Lucena e eu conversamos
sobre diversas ideias para a história. Ele me fazia viajar na imaginação,
provocava constantemente a minha criatividade, convidando-me a pensar em novas
possibilidades o tempo inteiro. Poderíamos conversas horas a fio, e decerto não
nos esgotariam os insights.
Pedro levantou da mesa para atender o
celular, quando Augusto Loureiro, o co-diretor da novela, aproximou-se.
- Posso sentar? – Abordou-me sorridente.
- Claro, por favor. – Permiti, meio
desconsertada. O que ele queria afinal?
- Desculpe-me a insistência, Celina. É
que vi seu jeito no cenário da capela, como ficou emocionalmente ao entrar lá.
- Augusto, está tudo bem. – Desejava
logo encerrar aquele diálogo.
- Gostaria apenas de lhe falar que eu
também fiquei emocionado ao ver aquele cenário. Simples e ao mesmo tempo
delicado, belo. E o melhor, passa realidade.
Concordávamos então. Sorri, por nossa
cumplicidade.
- Você percebeu mesmo.
- Sim, acho que por sentir o mesmo.
Fiquei um pouco lá atrás, orando, agradecendo por fazer parte deste trabalho,
com esta equipe. Senti Deus muito presente, sabe?
Aquela revelação me deixou completamente
surpresa. Augusto parecia descrever exatamente os meus sentimentos, quando
relatava os seus. Impressionante!
- Não percebi que estava lá atrás.
- Pois é. Não quis me aproximar para não
invadir o seu momento. Só o fiz quando a ouvi chorar, fiquei preocupado.
- Meu choro era de gratidão. – Poderia
então revelar a ele. – Você não tem noção do que isso significa para mim,
Augusto.
- Realmente não tenho, mas tento
imaginar.
- Como assim, imaginar?
- Pelo tempo que você ficou fora de sua
área de atuação, seu acidente, as críticas maldosas. Enfim, tudo o que uma
grande artista se depara no momento que decide apresentar seu trabalho ao
mundo.
Perfeita a sua percepção! Como se eu
tivesse partilhado com ele antes. No mínimo um homem de muita sensibilidade. Parecia
projetar meus sentimentos em sua fala.
- Diria que você é um homem perceptivo.
- Atento aos meus sentimentos. – De que
sentimentos ele falava? – Ao que é sutil e está à minha volta. – Respondeu, sem
saber que eu me perguntava aquilo. Sintonia total! – Muitas vezes partilhamos
das mesmas ideias, dos mesmos anseios e nos negamos a expressar isso.
- Você está falando de nós?
- Não apenas. Falo de quando nos
encontramos com alguém. Procuro sempre estar atento a isso, Celina. É aí onde
estão os grandes encontros. – Grandes encontros? Do que estava falando? – Foi
bom partilhar com você o mesmo sentimento naquele momento.
- Augusto, eu não sei o que dizer.
- Não precisa dizer nada, seus olhos
falam por você. – Aquela última declaração me deixou atordoada. Praticamente
não ouvi seu pedido de licença, e quando dei por mim, ele já estava a algumas
mesas da minha, conversando com outros colegas. Como se aquilo não tivesse
acontecido.
Pedro voltou para a mesa, falando alguma
coisa em relação ao seu vôo de volta a Fortaleza, nem pude lhe dispensar
atenção, o diálogo anterior havia me deixado um pouco perdida. Nem sabia ao
certo se não fora fruto de minha imaginação.
“Não precisa dizer nada, seus olhos
falam por você.”
A que Augusto Loureiro se referia afinal?
Eu o havia conhecido há pouco mais de uma semana, junto com os demais
profissionais da novela. Até então não passava de um colega de trabalho com o
qual não estabeleci nenhum tipo de intimidade. Em pouco mais de uma hora
transformara-se num homem sensível, perceptivo e cuidadoso.
Terminei o almoço, sem tirar os olhos do
co-diretor de Amazona, como se quisesse reconstituir sua abordagem à
mesa. Com que intuito a fizera? Bobagem, seria na certa uma pessoa tentando
apenas se aproximar, ser gentil. No entanto, acompanhei todo o tempo em que ele
ficara na mesa com os outros colegas, sem prestar atenção a uma só palavra dita
por Pedro Lucena. Até que levantou acompanhando os demais, e quando ia saindo,
voltou-se rapidamente a mim, hipnotizando-me com uma piscadela de olho.
Era real aquilo?
- Celina? Celina? Celina? – Pedro
tentava me trazer de volta de meu transe.
- Oi.
- Está tudo bem?
Percorri rapidamente o restaurante do
complexo com o olhar, na expectativa de ainda encontrar Augusto Loureiro.
- Sim, está. Fiquei apenas um pouco
distraída. – Procurei me recompor. Nada do co-diretor da novela no ambiente.
O que havia acontecido? Um homem que
outrora não passava de um colega de trabalho, de repente criara uma situação
totalmente inusitada e conseguira me deixar numa espécie de transe ou hipnose.
Ou seria tudo invenção minha?
“Não precisa dizer nada, seus olhos
falam por você.”
Por que então aquela frase ficara
ressoando em meus ouvidos? E se meu encontro com Augusto Loureiro se dera
apenas na capela fictícia?
Bom, só havia um jeito de saber:
Perguntando.
CAPÍTULO 10
Depois
de algumas semanas em São Paulo, precisaria voltar a Fortaleza para a festa de
papai e Júlia Serrado. Ele não me perdoaria se não estivesse presente neste
momento. Meu vôo sairia de Guarulhos à tarde e ainda teria uma última reunião
com o diretor da novela pela manhã. Precisávamos acertar alguns detalhes de
alguns pontos dos cenários e personagens, e eu já estava atrasada, quando a
campainha de minha suíte ressoou. Praticamente não conseguia enxergar o
mensageiro do hotel escondido pelas flores que trazia. Lindas.
-
São para a senhora.
-
Para mim? – Tomei o buquê em minhas mãos, surpresa. – Só um instante. – Entrei
e peguei rapidamente uma gorjeta. – Tome. Obrigada. – E tratei de dispensar o
empregado. Realmente eram lindas, deixando-me em transe. Quem as teria mandado?
Procurei então o cartão.
“Não
precisa dizer nada, seus olhos falam por você.”
Sim,
fora ele.
“Augusto
Loureiro”.
Não
cabia em mim de felicidade. Depois de nossa última conversa no almoço,
trocávamos muitos olhares. Era como se as palavras não dissessem tudo. Iniciamos
um diálogo misterioso, estruturado no silêncio e expressão do olhar. Passei a
procurá-lo discretamente nos ambientes, na expectativa de nutrir aquela relação
diferente constituída em cada palavra não dita, em cada gesto repleto de
significados inexplicáveis, em cada sorriso provocativo e encantador. O que me
fez prolongar minha estada em São Paulo por alguns dias. Bastou uma única
pergunta dele.
-
Você está voltando para Fortaleza?
Era
mais que aquilo. Augusto não tentava saber apenas se eu voltaria, mas lamentava
a pausa em nossa “relação” de troca e construção. Infelizmente, já não tinha
mais como adiar. Papai voltara de sua viagem aos Estados Unidos e eu ainda não
o tinha visto. Desejei permanecer, continuar com aqueles encontros, mesmo que
silenciosos que me faziam sentir mulher novamente.
Dulce,
minha enfermeira e amiga, já havia decido há algum tempo, preferira tomar café
no restaurante do hotel. Melhor assim, deste modo não precisaria lhe dar
maiores explicações sobre as flores, e certamente ela me encheria de perguntas.
E
mais uma vez a campainha tocou. O mensageiro teria esquecido de entregar mais
alguma coisa? Ao abrir a porta, a figura de Augusto Loureiro se fizera presente
bem diante de mim.
-
Olá. – Disse ele, sorridente.
Fiquei
completamente desconcertada.
-
Oi! Você não foi anunciado.
-
Ah, desculpe-me a indelicadeza. – Tentou consertar.
-
Não, não, eu fui indelicada. – Estava confusa e nervosa.
-
Encontrei com Dulce lá em baixo, ela me disse para subir.
-
Tudo bem, tudo mesmo. Não se preocupe.
-
Posso entrar?
-
Entrar? – Nem conseguia racionar direito.
-
Sim, entrar. A não ser que esteja ocupada.
-
Não, não estou. Na verdade, já estou de saída.
-
Desculpe mais uma vez.
-
Tudo bem, entre.
-
Soube que tem ainda uma reunião com o diretor da novela.
-
Isso, mas acho que é coisa rápida, veremos apenas uns últimos detalhes.
-
Bom, vim me despedir.
-
Despedir? Claro. Que bom.
-
E quando retorna?
-
Breve. Papai dará uma festa, ele voltou há pouco dos Estados Unidos com sua
esposa e deseja apresentá-la a todos.
-
Claro, ouvi falar. Fofocas de jornais.
-
É, eles não deixam a vida da gente em paz.
-
E você sabe bem o que isso significa, não é mesmo?
-
Sim, sei.
-
Então, boa viagem. Aproveite bem o reencontro com seu pai.
-
Obrigada.
Um
pouco de silêncio, e finalmente ele tomou a iniciativa de sair.
-
Então até seu retorno.
-
Se Deus quiser.
E
quando ia saindo, voltou-se novamente a mim.
-
Já ia me esquecendo. Você gostou das flores?
Esqueci
completamente!
-
Desculpe-me, Augusto. Que insensível eu fui. São lindas. – Voltei-me para elas,
no vaso, em cima de uma mesinha.
E
mais uma vez ele fitou meus olhos, como antes quando travávamos nosso diálogo silencioso.
Senti meu coração acelerado. Encontrava-se bem diante de mim, e não era
fantasia. Será que aquele homem tão bonito, envolvente estaria realmente
interessado por mim? Tantas outras mulheres bonitas por quem poderia se
envolver. Eu falava ainda com dificuldade, andava com a ajudada de uma bengala,
e muitos movimentos ainda eram restritos, tudo sequelas da lesão em minha
coluna.
-
Sentirei sua falta. – Foi Augusto quem tomou a iniciativa de confessar,
deixando-me embaraçada. Uma intimidade estabelecida em nossas trocas de olhares
há semanas.
-
Eu também sentirei falta de todos.
Ficamos
em silêncio por alguns segundos, uma eternidade, fitando os olhos, a boca. E
nos precipitamos mutuamente num beijo intenso, avassalador. Há exatos sete
anos, desde o acidente não vivia coisa parecida. Cada beijo, o calor, o cheiro,
o nervosismo, as palavras ditas baixinho, tudo me fazia sentir mulher
novamente. Íamos nos despindo aos poucos, envolvidos por uma cortina de prazer
e magia. Mais uma vez eu sentia o sabor de estar com um homem, inteiro,
entregue a mim. E quando ele se fez nu em músculos diante de mim, ostentando
toda a sua excitação, lindo, caí em seus braços. Tudo perfeito!
CAPÍTULO 11
No
primeiro final de semana após o meu retorno à Fortaleza, fui surpreendida pela
presença de Augusto Loureiro na capital cearense apenas para me ver. De
repente, em sete anos de morte em vida, estava eu novamente conhecendo alguém,
sonhando, fazendo planos. E ele se mostrava completamente encantado, envolvido,
como que estivesse realizando um grande sonho, relacionando-se com alguém, com
quem muito desejou e então fora presenteado pelo universo com sua presença
encantadora.
Papai mostrou-se feliz com meu
relacionamento e ao mesmo tempo apreensivo por não saber nada da vida de
Augusto. Fez questão de recebê-lo em nossa casa para um almoço. Assim seria uma
forma de termos um pouco mais de segurança acerca de suas intenções.
Fiz questão da presença de meu amigo
Tancredo Flores que se mostrou surpreso quando os apresentei. Não sabia ao
certo o que, mas parecia entristecido, decepcionado, não sei. O que foi
percebido até por Augusto, que afirmou, após o encontro, detectar uma paixão
recolhida de meu amigo ao meu respeito. Não podia ser, eu nunca havia
percebido, ou não quisera perceber. Ou então, tudo não passava de um engano.
Bom, eu estava muito bem e não valia mais a pena pensar sobre aquilo. Se
tivesse que ser, já teria acontecido. Certamente minha felicidade estava
realmente ao lado de Augusto. Tudo se encaixava, era perfeito. E este, fora
aprovado totalmente por toda a minha família. Confesso até me surpreender com o
silêncio de Maria Eugênia sobre o assunto. A convivência com aquele homem
fazia-me viva novamente e Maria Eugênia nada fizera para atrapalhar, assim como
procedera durante toda a minha vida.
Era tarde chuvosa do mês de maio e
estávamos Augusto e eu abraçados na varanda de minha casa. Falávamos de quando
éramos crianças e apreciávamos aqueles dias chuvosos. Estava frio e tentava me
aquecer no calor de seus braços. Sua volta à São Paulo seria na madrugada do
dia seguinte, após uma semana em que lhe apresentava a capital cearense. Embora
eu fosse ao seu encontro brevemente, via-me tomada pela saudade.
- Como nós ficamos agora? – Indaguei
apreensiva.
- Vamos nos falar a cada minuto. –
Respondeu ele na mesma atmosfera apaixonada.
Sim, sentia-me completamente apaixonada.
Depois de tantos anos, pensei nunca mais sentir algo parecido, como uma
adolescente.
- Se nos falarmos a cada minuto, não
conseguiremos mais trabalhar. – Brinquei.
- Quem disse que eu quero trabalhar? A
única coisa que eu quero agora é sentir você, estar com você.
- Repete!
- A única coisa que eu quero agora é
sentir você, estar com você.
Sorri de felicidade em meio aquela
chuva. Podíamos sentir o vento umedecido em nossos rostos, o que nos deixava
com ainda mais frio.
- Tenho medo de tudo isso ser um sonho.
– Confessei.
- Se for um sonho, estamos juntos nele.
- Você agora vai voltar para São Paulo,
ficar sozinho. Bonito como é, logo será abordado por alguém.
- Só você me interessa agora.
Não compreendia o que em mim teria lhe
despertado a paixão.
- Posso acreditar nisso?
- Não consegue sentir? – Perguntou ele.
- Sim.
- Casa comigo?
Casar?! O quê?!
- Como?
- Casa comigo!
Saí de seus braços, voltando-me para
fitar seu rosto.
- O que está dizendo?
- Estou completamente apaixonado por
você, Celina! Quero viajar amanhã tendo a nossa relação assegurada
oficialmente.
- Mas não é cedo? – Encontrava-me
chocada, apesar de feliz.
- Não quando se ama. Você é escritora e
não sabe disso? – Sorriu.
E nos amávamos? Temi perguntar aquilo e
quebrar o clima, o romantismo.
- É que você me pegou de surpresa.
Um trovão e joguei-me em seus braços.
Fui acolhida com tanto afeto.
- Eu não tenho dúvida nenhuma, Celina.
- De quê?
- Que você é a mulher da minha vida.
Seria real, possível ele está tão
apaixonado num período tão curto? E o que eu sentia realmente? Era bom estar ao
seu lado, prazeroso, sabia de meu envolvimento. Mas casar... De qualquer modo
Augusto trazia-me de volta à vida, e aquilo não tinha preço. Apaixonada? Sim,
acho que poderia chamar de paixão o que sentia.
- Tenho medo, Augusto.
- Não tenha medo de ser feliz novamente,
Celina. Aceita casar-se comigo?
- Mas é ainda um segredo nosso.
Foi ele agora quem saiu do abraço e me
olhou forte nos olhos.
- Isso é um sim?
Hesitei um pouco antes de responder.
- É.
E ele sorriu, celebrando. Então nos
beijamos.
CAPÍTULO 12
Após
o grande sucesso da novela Amazona, chegando a quase trinta pontos de
audiência, durante os dez meses em que esteve no ar, minha felicidade só viera
a se completar depois de meu casamento com Augusto Loureiro. O que havia
acontecido recentemente.
Entrei no banheiro do quarto, certa
noite, enquanto Augusto livrava-se do cansaço no chuveiro. Era uma quinta-feira
de início de junho, eu acho. O primeiro grande desafio diante de meu maior
inimigo, depois de anos. Três filinhas de pó, na pia, logo à minha frente.
Senti meu coração acelerar. Olhei para o
chuveiro e podia ver a silhueta de meu marido, deliciando-se em seu banho.
Talvez preparando-se para o “prêmio do dia”. Não! Não podia ser. Não Augusto.
Eu nunca, em um ano e meio de relacionamento, percebi nada, nenhum vestígio,
qualquer coisa que me fizesse desconfiar de um vício. Realidade conhecida por
mim tão de perto durante anos de minha vida. Saí dali transtornada.
Alguns minutos depois do banho de
Augusto, um silêncio. Minutos que parecera uma eternidade. O que estaria ele
fazendo? Voltou ao quarto, limpando o nariz.
- Oi, meu bem. Estava aí fazia tempo?
- Não. Cheguei agora.
- Está tudo bem, Celina?
Ele certamente se dera conta de meu
nervosismo, de meu questionamento interno, de um incômodo gigantesco que
parecia me dominar por completo. Não estava nada bem. E não ficaria tão cedo.
Desde aquele dia, flagrei diversas vezes a mesma cena, no banheiro de nosso
quarto.
Aquela situação me tirava totalmente o
equilíbrio. Podia ter passado horas meditando. Ao me deparar com meu inimigo
encima de minha pia, experimentava a mesma fraqueza de outrora. Desejava chegar
mais perto, sentir a textura,o cheiro. Sentir a mesma sensação por Augusto
experimentada certamente após aqueles banhos. Por isso saía tão bem, tão
disposto, com uma alegria exagerada até. E, à vezes, me dizia coisas sem
sentido. “As bolas da toalha caíram.” Ou “Segura meu pé, Celina, ele está
crescendo.” Eu simplesmente disfarçava, fingia não ouvir, tratava como se não
soubesse de nada.
Minha família poderia não aceitá-lo em
nossa casa. Se papai descobrisse, certamente o expulsaria. Eu estava muito
feliz para perdê-lo. Feliz? Não sei bem. Desde a primeira vez em que flagrei
cocaína em nosso banheiro, nunca mais tive paz. Muitas vezes, sentia inveja
dele. Augusto era livre de todos, dos olhares, das dores das pessoas, de
culpas. Não se prendia a nada. Cheirava simplesmente. E não se mostrava
acometido de nenhuma culpa. Pelo contrário. Considerava sua vida perfeita, como
antes de eu saber daquilo.
Com o passar do tempo, meu marido entregou-se
aos seus rituais com o pó, abertamente, com a porta do banheiro escancarada,
conversando comigo acerca de seu trabalho dirigindo os programas locais da RTN,
como se estivesse ali fazendo a coisa mais normal do mundo. E eu, preferia
permanecer no silêncio sobre aquilo. Nada poderia fazer.
Experimentava inveja de Augusto por ser
tão livre e poder “cheirar” sem se importar com ninguém. Sua vida era perfeita.
A minha não! A cada dia que passava, desejava mais aquele prazer, a mesma
sensação de anos antes. O que me deixava trêmula, ansiosa, chegando a gaguejar.
Se eu experimentasse somente um
pouquinho? Talvez fosse isso que precisasse fazer. Talvez eu percebesse que não
necessitava mais daquilo. Afinal, desde o acidente, nunca mais eu havia chegado
perto de nenhuma droga. Se não o fizesse, como poderia ter certeza que aquele
vício não mais me dominaria? Assim como ele não dominava meu marido. Augusto
exercia um certo controle sobre aquilo. Pelo menos parecia exercer. Será?
Aos poucos minha vida vinha se tornando
um grande tormento. E tudo no mais completo silêncio. Claro que as pessoas a
minha volta notavam. Tancredo foi o primeiro a questionar. A ansiedade começava
a me deixar impaciente, agressiva.
- O que está acontecendo, Celina? De uns
tempos pra cá você tem mudado.
- Nada! Não está acontecendo nada. Por
quê?
Estava acontecendo sim. Até a presença
das pessoas, que não sabiam o que se passava dentro de mim, me irritava. Ou
seja, todo mundo. Augusto era a única pessoa de quem eu desejava estar perto. Até
meu trabalho sofreu com a mudança. Já não conseguia entregar a tempo os capítulos
de uma minissérie na qual trabalhávamos. As idéias me faltavam, as palavras não
me vinham. Levando-me rapidamente ao desespero.
Mas eu não podia! Não depois de tudo. E
Vinícius? Ora, Vinícius já havia me perdoado. Além do que não existia motivos
reais para nenhum perdão. Fora tudo uma fatalidade. Loucura de minha cabeça
considerar-me culpada durante tanto tempo. Idiotice minha! Até as lembranças da
culpa por mim sentida todos aqueles anos, me enojavam.
Uma nova Celina Gondim nascia dentro de
mim com aquele casamento. Uma mulher mais livre de tudo.
Dentro de alguns meses, cedi à tentação!
Inicialmente fazia escondido, antes que
Augusto saísse do chuveiro. Comecei cheirando uma das fileirinhas. Em alguns
dias, passei a cheirar duas, depois três. Uma semana depois, acho, cheirei
todas. E aquilo me deixou em pânico. Mas era tanto prazer, uma sensação de
tanta leveza tomando conta de mim, que nem me importei. Lembro-me da imagem de
meu marido, rindo, encostado na porta do banheiro.
“Assim, não dá, meu amor. Todas?”
Nós dois ríamos muito. A partir dali,
passamos a fazer aquilo juntos. Muita cumplicidade, muito amor. Depois fazíamos
amor intensamente. Como era bom! Aqueles rituais de prazer tornavam-se cada vez
mais frequentes. Primeiro aconteciam à noite, depois, em qualquer hora do dia.
Eu “cheirava” até para escrever. Aquilo
me aguçava a criatividade, dava-me ânimo de trabalhar. Um novo momento em minha
vida, agora controlando o vício. Não que eu precisasse da coca, mas era bom. E
diferente de Vinícius, Augusto me entendia, ajudava-me a ser mais inteira, a
ser mais eu. Sem ninguém para me cobrar ou direcionar a minha vida. As pessoas
não precisavam saber. Somente nós dois. Era um segredo nosso. Coisa de marido e
mulher.
Estranhei quando papai me perguntou se
estava usando drogas novamente. Como poderia ele saber? Disse apenas que não,
naturalmente. E por incrível que parecesse, até Maria Eugênia entrou em minha
defesa. Repreendo-o por tamanha falta de respeito. Talvez estivesse ela
mudando, descobrindo uma nova mulher dentro si, como eu. Poderia até ser o
início de uma nova fase em nossa relação.
Uma nova Celina Gondim, agora livre!
CAPÍTULO 13
Toda
a mansão das Dunas ficara ansiosa nos preparativos de comemoração de meu
aniversário de trinta e cinco anos. Os dias que antecederam a festa se faziam
respirar o evento. E justo naquela época, me deparei com os exames de papai. Eu
já sabia do tumor e que teria pouco tempo de vida. Era um segredo nosso. Os
anos, me faziam acostumar com a ideia. Como o tempo se passava e nada de grave
acontecia, passei a não mais me importar. Torcia, lembro, por um milagre. Creio
que isso acontecia diariamente.
A verdade, porém, viera à tona. E aquilo
me fizera sofrer.
Em poucos dias, presenciei, sem querer,
um telefonema de papai para seu advogado, tratando de umas “aparências”,
segundo ele, que precisam manter dentro da empresa, escondendo a verdadeira
situação financeira da RTN.
Mais mentiras.
A imagem casta que eu havia alimentado a
vida inteira acerca de papai começava a se desmoronar.
- Como pôde?
- Você não entenderia, minha filha?
- Tente me explicar.
- Não posso. Envolve muitos interesses,
entende?
“Interesses!”
Na verdade, precisava confirmar que tudo
era mentira, que minhas descobertas não passavam de equívocos. Mas não eram.
Ele mesmo me confirmou a veracidade dos fatos.
Aquilo mexia com toda a minha vida, com
minha identidade. Como se parte de minha história fosse uma de minhas criações.
E era. O homem o qual conheci como meu pai, não existia. Em seu lugar uma outra
pessoa, um estranho. Difícil de suportar sem a coca! Se não fosse por Augusto e
nossos rituais secretos em nosso quarto, não sei como sobreviveria aquilo.
Cheguei
a desistir da festa. Não fazia sentido tal acontecimento. Tudo era também uma
grande mentira. Comemorar o quê? Eu mesma não sabia mais quem eu era. Mas
aconteceu. E foi recheada de vários escândalos.
Foram duas descobertas que me fizeram
beber horrores e misturar com coca, naquele dia. A verdade sobre o estado de
saúde de papai e seu casamento com Júlia Serrado, destruindo a imagem que eu
tinha dele a vida inteira. Bem como uma conversa de meu marido com Maria Eugênia,
pouco antes da festa, na qual riam e festejavam o sucesso de seu plano.
- Ela foi mais tola do que eu pensei,
Augusto! – Surpreendia-se Maria Eugênia, triunfante.
- Viu como valeu a pena a espera? –
Brindava ele, com largo sorriso.
- Falta apenas o golpe final.
- E quando quer?
- Hoje. Você a deixará hoje, em seu
aniversário. Quero ver minha irmãzinha querida abandonada pelo marido a quem
tanto ama no dia de seu aniversário.
- Não é maldade, Maria Eugênia?
- Ora, ora, Augusto... você não está
recebendo uma fortuna para sentir pena daquela sonsa. Ela passou a vida inteira
manipulando toda a nossa família em proveito próprio, fazendo-se centro das
atenções. Roubou somente para ela toda a atenção e cuidado de papai. Sabe
direitinho como fazer para conseguir o que quer, fazendo com que todos
acreditem ser uma santa. No final, a
vilã sempre sou eu. Chega! Celina agora terá o que merece.
- Como queira.
- Eu estou apenas fazendo justiça. E
agora chegou o grande momento.
- Foi difícil, mas deu certo.
- Realmente, Augusto, você fez um belo
trabalho. E o tempo foi justo sim. Mas agora ela está de volta para onde nunca
deveria ter saído, a sarjeta!
E eles riram muito.
- Só não sei como você conseguiu, como
teve estômago pra aturar tanto tempo, pra se deitar com uma... uma coisa
daquelas! – Fazia um gesto de nojo.
- Como disse, sou bem pago pra isso,
minha cara. – Ergueu o copo de uísque, propondo mais um brinde.
O plano dera certo. Eu estava novamente
completamente entregue à droga. E agora, com uma faca cravada em meu peito,
pelas costas, por minha irmã e meu marido. Tudo nunca passara de uma grande
armação. Fora um plano minucioso, repleto de pormenores, perfazendo um ano e
meio pelo menos. Um grande investimento. E como a própria Maria Eugenia,
comemorava, uma cartada de mestra.
Minha irmã me prometera certa vez, pouco
depois de minha chegada naquela casa, que um dia eu me arrependeria de entrado
naquela família, de roubar uma espaço que era seu por direito. Aquele dia,
chegara!
Maria Eugenia Gondim planejara aquela
aproximação cuidadosamente, investira alto para que Augusto me seduzisse,
tivesse coragem de se casar com uma aleijada e depois me fizesse voltar ao
mundo das drogas.
~
Aquela festa de aniversário fora
realmente um divisor de águas na vida de muita gente. O vídeo de Maria Eugênia,
levando o nome de nossa família à lama, minha queda logo após os festejos dos
parabéns, completamente bêbada e drogada, caindo nos braços de meu marido. E um
discurso no qual não falava coisa com coisa.
Papai vira sua família destruída. A
intimidade das duas filhas expostas. E aquilo quase o matou. Já não era mais
segredo para ninguém que eu havia caído novamente no vício.
Nem
tive como me dar conta do que acontecera ao meu sobrinho, ainda na mesma noite.
Foi Maria Antônia quem depois me revelou.
De
modo discreto e sofrido João Henrique nutrira durante anos uma grande paixão
pelo melhor amigo Alexandre, o filho de Olívia Cordeiro. Os dois tinham uma
relação de muita proximidade e cumplicidade desde os tempos de colégio. E o
outro parecia se aproveitar dos sentimentos secretos de meu sobrinho para
garantir a cobertura em suas aventuras e até mesmo dinheiro, visando a
manutenção de seu vício. A amizade de adolescentes foi ganhando assim uma nova
roupagem nos últimos anos. E depois de flagrar um beijo de Carola, sua
ex-namorada e João Henrique, Alexandre resolveu revelar a verdade em público
sobre os dois. E o palco do infortúnio, foi justamente a minha festa de
aniversário.
Alexandre
tomou o microfone e chamou a atenção de todos ali. Completamente embriagado,
talvez “cheirado”, queria se vingar pela traição do amigo. Por mais que o meu
sobrinho tentasse lhe explicar, o rapaz parecia transtornado, sem aceitar
qualquer argumento que inocentasse o amigo.
-
Eu quero dizer, pra todo mundo ficar sabendo aqui, que o João Henriquezinho...
– Pronunciou, desmunhecando, em tom de gozação. – É gay! – Meu sobrinho não
acreditava no que ouvia. – - Ele é gay! Sempre que a gente ia dormir no mesmo
quarto, ele ficava me apalpando, pegando no meu pau, quando eu estava dormindo.
E um dia desses, eu acordei e ele tava fazendo oral em mim. – Aquilo causou um frisson
em todos. A festa inteira parecia olhar para João Henrique, procurar por ele,
como se perguntassem, confirmassem o que seu melhor amigo falava a seu
respeito. Foi Olívia quem subiu no palco, tentando tirar o filho dali. – E tem
mais, não foi uma ou duas vezes, quase sempre acontecia.
Muitos
riram.
João
Henrique correu dali, desesperado, desnorteado. Pronto, seu segredo fora
revelado a todos da forma mais desrespeitosa, mais indigna possível. Ao
perceber os sentimentos, a forte atração de seu meu sobrinho por ele, Alexandre
passou a provocá-lo em constantes insinuações, criando situações em que os desejos
do outro eram postos à prova permanentemente, até consumarem o fato com sexo
oral. O que se tornou aos poucos um costume. Entretanto, nada era conversado
entre eles, como num pacto de silêncio. Para todos os efeitos, Alexandre de
nada sabia, como se seu corpo fosse violado quando dormia. Uma farsa estabelecida por anos, a fim de
darem vazão aos desejos nunca assumidos. Com o tempo, João Henrique foi se
libertando da culpa e aceitando a relação secreta, na qual se entregavam aos
prazeres da carne em sua intimidade e faziam com que todos acreditassem na
relação de pura amizade entre ambos. Uma troca silenciosa, para meu sobrinho, a
garantia de ter a pessoa por quem era completamente apaixonado ao seu lado, não
importava como. Para Alexandre a certeza do cúmplice em suas aventuras e
mantenedor de seu vício.
João Henrique sequer conseguiria mensurar a
vergonha naquela noite. Seu pai, de quem sentira tanta falta a vida inteira e
então passava um tempo conosco, por conta de seus negócios, testemunhara a cena
grotesca. Chegava a não ouvir nada, nem ninguém, nem Carola chamando por ele,
pedindo que se acalmasse, dizendo que o ex-namorado era um louco. Mas meu
sobrinho sabia que não era verdade. Louco era ele mesmo por ter acreditado numa
cumplicidade que nunca existira. E seu pai, ali presente, ouvindo todos aqueles
absurdos sobre ele. Pensava em como Willames e Leonardo estariam. Deixou os
portões da mansão das Dunas aos prantos, totalmente desorientado. Poderia
morrer naquele momento. E lá fora, em meio a muitos carros, Renato Brandão, o
sócio de Olívia Cordeiro na Mirage, acenando para ele, pedindo que entrasse em
seu carro. Sua salvação!
Renato e meu sobrinho não deram uma só
palavra no trajeto das Dunas até o apartamento do mesmo. Chegando lá, cuidou
para colocar João Henrique num quarto de hóspedes, preparar-lhe um banho e
cuidar para que tomasse um chá quente. Em pouco mais de uma hora, tempo
suficiente para o rapaz se banhar, limpar aquela energia de mágoa e decepção, e
vestir um roupão limpinho, Renato bateu na porta do quarto, levando-lhe o chá.
Era tudo que meu sobrinho precisava naquele momento. Uma pessoa amiga e
distante de toda aquela imundice que lhe apoiasse, que lhe respeitasse e o
entendesse.
- Posso entrar? – Perguntou Renato
cuidadoso. – João Henrique fez que sim com a cabeça. Queria ficar calado. – -
Como você está se sentindo? – Insistiu.
- Parece que um trator passou por cima
de mim, acabando com a minha vida. – Respondeu meu sobrinho cabisbaixo. – É uma
dor, uma vergonha. Acho que nunca mais vou ter coragem de pôr minha cara na
rua, sabe?
- Isso passa. Daqui a pouco, todo mundo
vai ter esquecido.
- Você acha que as pessoas acreditaram
nele?
- Creio que ele fez um bom estrago. Mas
não nada que não possa ser recuperado. Essa coisa de honra, de moral, as
pessoas logo esquecem, até que a honra e a moral de outra pessoa seja atingida.
João Henrique lembrou dos comentários do
próprio Alexandre acerca de Renato Brandão e Holanda, referindo-se a ambos
algumas vezes simplesmente como um casal amigo de sua mãe, tratando-o de “tio
Renato”, outras vezes como viados. Embora o filho de Olívia Cordeiro não
parecesse ser um cara de fato preconceituoso, uma vez ou outra dava indícios de
que era.
- Você acreditou? – perguntou a Renato,
usando-o como um termômetro.
- Para você, qual é realmente a
importância?
Me sobrinho se levantou, olhou para a
janela, ponderou um pouco. Estava ainda confuso.
- Cara, eu sou um homem. Não quero que
minha família, as pessoas me olhem atravessado.
- Se não te olharem atravessado por
isso, vão te olhar por outro motivo, por você ser um cara inteligente demais,
mais do que eles, por você ser um cara alto ou baixo demais, lindo ou feio
demais, gordo ou magro demais, porque tem um cabelo escuro ou claro. As pessoas
vão sempre encontrar uma forma de te olhar atravessado. E essa coisa do sexo
esconde todos os desejos e repressões das pessoas. Na verdade, nós nos
projetamos uns nos outros, em relação a essa questão, como forma de viver, um
segundo que seja a expressão daquilo que verdadeiramente queremos e não nos
permitimos por conta da moral e dos bons costumes. Quando apontamos para
alguém, criticamos, julgamos, depois excluímos, é como se experimentássemos no
outro um pequeno gostinho daquilo que está em nós. Mas a estrutura formal da
crítica é “se eu não posso, o outro também não.” Entende? Nossas atitudes de
hostilidade, são na verdade contra nós mesmo. O outro é apenas um
bode-expiatório.
- Mas eu não sou isso.
- Realmente não, meu rapaz. Nós somos o
que somos, só. Você precisa apenas descobrir...
Renato
Brandão fora uma presença importante para meu sobrinho naquele momento,
ajudando-o a se reerguer e voltar para casa, olhar para cada um de nós,
retornar a sua vida normal. Óbvio que seu normal agora seria diferente. Ele não
mais se portaria como antes, pensaria as mesmas coisas sobre tudo. Algo dentro
de si havia mudado e ele não sabia bem ainda o quê. Decidiu apenas continuar e
descobrir diariamente esse João Henrique mistério. Talvez não precisasse mais
se esconder, de si mesmo!
Renato
deixou meu sobrinho descansando e viu seu pensamento transformar-se em
palavras.
“Parece
uma missão, estar sempre me envolvendo com pessoas em processo de descoberta.”
Sorriu e completou: “Tão novinho! E por que não?”
Desejei
ter estado mais presente na vida de João Henrique, ajudá-lo. Não obstante, era
e eu naquele momento quem mais precisava de ajuda. E justo, quando finalmente
Dulce havia conseguido um novo emprego, e deixava a mansão das Dunas. O que
Deus queria me comunicar afinal?
CAPÍTULO 14
No
dia seguinte àquela festa fatídica, deparei-me com o vazio no armário de meu
marido. Ele não cumprira o acordo com sua parceira, acabando o falso casamento
no dia da comemoração de meu aniversário, talvez pela conjuntura, meu estado de
embriaguez, não sei. Mas fora embora de minha vida logo depois.
E no armário, apenas um bilhete.
“Desculpe-me.”
Pensei finalmente em tirar minha própria
vida. Mas poderia ter volta. Num surto de arrependimento e constatação de amor,
Augusto poderia voltar atrás e encher minha vida de sentido.
Foi Tancredo Flores quem esteve do meu
lado em todo aquele momento. Ouvia-me falar de meu amor por Augusto por horas,
sem parar, de como éramos cúmplices, e do quanto nos amávamos mutuamente. E que
fora apenas uma fraqueza. Sendo ele um homem de palavra, resolveu cumprir o
acordo com minha irmã. Mas que poderia ele se arrepender. Logo estaria de
volta.
Tancredo ouvia atentamente minhas
lamentações, meus devaneios, tocava meu rosto, enternecido, passava a mão
delicadamente por meu cabelo e deitava minha cabeça em seu colo, fazendo-me
sentir à vontade para chorar até o dia amanhecer.
- Eu vou morrer, Tancredo!
- Eu estou aqui com você.
Dizia aquilo com a tranqüilidade e a
certeza de que nada de mal me aconteceria, de que me protegeria de qualquer
coisa. E que logo, eu ficaria bem.
Foram semanas de sofrimento, até me
levantar daquela cama e decidir realmente ficar bem, para lutar por meu amor.
Augusto não poderia nada sentir por mim
após tanto tempo de convivência. Por que então protelou tanto tempo a
finalização do golpe, contrariando as expectativas de Maria Eugênia? Por que
não fora mais objetivo, aceitou que nosso casamento fosse adiado por meses,
pondo em risco o alto valor a ser recebido pelo feito? Foi o que lhe perguntei,
em algumas semanas, no Rio de Janeiro.
- Não interessa agora. Já acabou,
Celina. – Disse ele, quase fechando a porta de seu luxuoso apartamento no
Leblon. Provavelmente comprado com o dinheiro gerado por nosso envolvimento.
- Não sei como pude ser tão tola!
- Não foi. Eu sou bom no que faço.
Uma marca de arrogância não percebida
por mim em todos aqueles meses.
- Não somente tola, mas cega. Você nunca
foi o que pensei.
- Nunca somos o que as pessoas pensam de
nós.
Tão óbvio e eu precisava de uma tacada
daquelas para compreender. Lindo e arrogante. Um grande canalha!
- Para mim é muito estranho estar sendo
acordada de um sonho o qual me trouxe tanta vida. É como se eu estivesse sendo
tirada, arrancada de uma de minhas próprias histórias.
- Sim, tudo foi criado por você mesma,
Celina. Eu dei apenas a tônica. Como um bom diretor que sou.
- Hum, hum. Errado. Você nunca foi um
bom diretor. É medíocre enquanto profissional. Estava na RTN por seu marido,
somente.
- Se eu fosse tão ruim, você não estaria
aqui.
- Exatamente por isso que estou aqui.
Como disse, Augusto, não foi você. Fui eu mesma. A criação foi minha. O mérito
é todo meu. Você não precisou fazer nada.
- Olha, eu sinto muito.
- Sente? Você mente, se casa comigo de
conchavo com minha irmã pra me enganar, traz novamente a droga pra minha vida,
e diz que sente muito?
- Foi um negócio. Não pra eu me
envolver, entende?
- E se envolveu?
- Eu preciso sair. Você está me
atrapalhando.
- Responde. Você se envolveu?
Eu precisava saber da verdade.
- Por favor, vamos facilitar as coisas.
Meu advogado já está providenciando os papeis do divórcio. Logo, logo você
estará livre de mim.
Mas eu não queria estar livre dele.
Queria seu cheiro dentro de mim, sua pele, seu suor em minha boca. Queria
senti-lo mais uma vez. E ao mesmo tempo, eu me odiava por desejar aquilo.
Sentei-me no sofá logo à frente e pus-me
a chorar. Enfrentara uma viagem ao Rio, sozinha, sem a ajuda de ninguém. Viajei
sem mesmo avisar para Dulce. O que nunca acontecia. Mas para mim, era uma
questão honra. Movia-me com dificuldade, mas eu precisava estar ali, lutando
pela verdade de minha vida, senão aquilo me mataria de vez.
- Olha, Celina, daqui a um tempo, você
vai ver que foi melhor assim. Que eu realmente não era a pessoa certa pra você.
Podia não ser a certa, mas era a que meu
coração escolhera.
- Como pôde, Augusto? Como pôde? Foram
tantas mentiras. Fizemos tantos planos. Mentira, mentira e mais mentira!
- Nem tudo foi mentira. Tiveram coisas
que eu realmente queria que acontecessem. Eu também sonhei. Mas não deu, pôxa.
Eu caí na real.
- Então você hesitou em algum momento?
- Isso não importa mais. O que importa é
que agora nós estamos aqui tendo nossa última conversa.
Aquilo me doeu como no dia em que o vi
confabulando com minha irmã, planejando a cartada final.
- O que leva uma pessoa a fazer isso,
Augusto?
Ele hesitou um pouco antes de responder.
- A vida não foi nada fácil para mim,
Celina. Como disse, sou um diretor medíocre. Nunca seria um grande
profissional. Não vou passar de um diretorzinho de merda. Enquanto isso outras
pessoas conseguem o cargo, o dinheiro que eu preciso, que me deixaria feliz.
Hoje, não tenho o cargo ideal. Mas tenho muito dinheiro. O suficiente para não
precisar do cargo ideal, entende? Tudo o que eu fizer daqui pra frente, vai ser
lucro, só.
- E isso é seu conceito de justiça?
- Talvez não só isso. Mas em parte sim.
Por que muitos podem, tem e eu não? Isso não é justo.
- E pra mim, foi justo?
O vi engolir aquela pergunta no seco.
- Você já tem tudo, Celina.
- Não tenho você.
- Pois é. E eu não tenho e nunca terei o
cargo ideal.
Ele não disse que também não tinha a
mim. Para Augusto a vida se resumia no conforto proporcionado pelo dinheiro
conseguido através de minha ruína.
- Eu poderia te dar muito mais.
Como tive coragem de propor aquilo?
- Aí é você que não merece isso.
Vi naquela resposta um cuidado,
distante, mas o traço de seu envolvimento.
Com dificuldade, dei as costas, deixando
para trás o que me trouxera tanta felicidade nos últimos anos.
- Celina? – Ainda me chamou.
- Oi? – Voltei-me, na esperança que
tivesse ocorrido um milagre.
- Eu me envolvi.
Vi um brilho em seu olhar, escondido
rapidamente pelo desvio de cabeça. Voltei para casa, trazendo comigo uma dor
profunda.
“Foi melhor assim.”
Ouvi aquilo de Tancredo, como a uma
sentença.
CAPÍTULO FINAL
A
vida parecia querer me dizer algo. A imagem destruída de papai, o fim de meu
casamento, após descobri-lo como uma estratégia de minha irmã para acabar
comigo, por uma vingança sem sentido. Meu sofrimento, a não aceitação do
abandono.
E por fim, o presente de Pedro Lucena,
por meu aniversário, o qual não havia aberto devido os acontecimentos que se
seguiram naquela festa infeliz.
Os três arcanjos. Miguel, Rafael e
Gabriel. Eram imagens em cristal fino, de tamanho mediano. Os três anjos
voltavam à minha vida. E logo naquele momento, final de dezembro de 2011.
Desejei jogá-los fora, quebrá-los, vê-los em pedaços. Lembrei da casa, da casa
dos anjos. Tão importante durante a minha infância. Fazendo-me experimentar
a alegria nunca antes sentida. E de repente, aquelas imagens estavam de volta.
Tratei de devolver os cristais para sua
caixa, guardando-os de mim, como se me protegesse ou “os” protegesse. Não sabia
qual o significado daquilo. Mas me veio à intuição que logo conheceria. E junto
com aquele sentimento, uma imagem forte de papai.
Leonardo Gondim construíra um império e
tudo fizera para mantê-lo. Puros “interesses”! Viera do nada, de uma vida
humilde e conquistara o poder. Tecera uma imagem de honestidade, coragem, força
e transparência. Quando na verdade fora movido pela negação de todos os seus
sentimentos, pelo medo de não conseguir mudar sua vida ou voltar a ser o que
era, pela fraqueza de ceder a tudo o que lhe corrompia, pela mentira de si e
dos outros.
A marca maior de Leonardo Gondim, meu
pai, fora o poder!
Passei então a perceber como esta marca
estava registrada em minha alma. E a
conheci bem cedo, ainda menina, brincando com uma casa, cujo poder de
transformar o indesejado naquilo que eu queria, fazia-me sentir a felicidade
nunca experimentado no mundo real. Fazia-me sentir como um deus, que faz e
desfaz, detentor de toda a força, toda a soberania, toda a capacidade de
definir a vida, de determinar o passo seguinte de cada um à minha volta. Era um
mundo só meu, um universo paralelo, o qual me levava à felicidade tão sonhada.
E quantas pessoas não têm seu universo
paralelo, de crianças até, muitas vezes, à vida adulta? E quão diversos eram
esses universos! “A vida do meu melhor amigo...”. “A família que eu gostaria de
ter...”. “Meu príncipe encantado...”. “Ganhando na loteria...”. “Minha vida
como um filme...”. “Minha rede de televisão...”. “O mundo dos sonhos...”. E
tantos outros universos paralelos, que se disfarçam tão bem, entorpecendo-nos e
fazendo-nos desejar viver dentro deles, distantes do que é real. Universos que
nos aguçam à criatividade, dando-nos a possibilidade da vida ou da morte.
A casa dos anjos era a chave para
tal universo paralelo, tirando-me do mundo real, da realidade saudosa da
companhia de papai, de não experimentar o convívio com uma família perfeita
construída em minha mente.
Ao mesmo tempo que a casa dos anjos
me instigava à criatividade, à infinidade de possibilidades de minha própria
imaginação, à beleza de um mundo infinitamente encantador e diverso dentro de
mim mesma, ela também me conduzia ao isolamento, ao egoísmo, à morte para o
mundo real. Com a casa dos anjos eu vivia todo o meu poder. Ela era o
meu objeto de poder, de conquista do que eu elegia como aquilo o qual me traria
a felicidade.
Com a verdade sobre papai, passava a ver
como as pessoas à minha volta também criavam seus objetos de poder, suas chaves
para conquistarem o que julgavam ser o bem para si mesmas ou para os demais,
como as pessoas criavam também suas casas dos anjos. E dentro de outros
contextos, aquelas casas, objetos de poder, eram revestidos de desejos,
de manipulações, de medos e pecados. Percebia como a maioria de nós operava com
esses objetos. Fosse uma conta bancária, uma aliança, um carro novo, um vestido
da moda, o sapato da vitrine, a diretoria da empresa, o emprego dos sonhos, o
melhor curso, ser visto como herói, o segundo idioma, a frase certa, a última
fala, a decisão, o final de semana no hotel famoso, o dia de ontem, a festa de
amanhã, estar com meu ídolo, meu marido, meu filho, minha família, meu melhor
amigo, meu grande amor. Os mais diversos e mais simples também. Mas estavam
ali, fazendo parte de nosso dia-a-dia, e possibilitando-nos a experiência
mínima que fosse do poder. Meras coisas banais, posições sociais e financeiras,
lugares ou situações, pessoas que amávamos ou as mais inusitadas casas dos
anjos. Embora não se tratassem propriamente de universos paralelos. E
podiam até ser, mesmo que por segundos.
Com os passar dos anos, reformei a minha
casa, conhecendo um novo caminho a um mundo imaginário, as drogas. Neste
caminho, passei a maior parte de minha vida. Foram as drogas naquele momento a
minha casa dos anjos, a chave para o meu poder, o meu objeto de poder,
por muitos anos. Até o acidente me levar à uma nova casa, a minha
condição de tetraplégica, escondendo-me das verdades de um mundo, cujas dores
preferia evitar.
Passei
a maioria dos anos de minha vida, infeliz, tentando constituir o que não estava
em mim. Vivendo o apego a qualquer mínima situação que denotasse o que eu
queria que fosse. Juntamente com este apego, o medo de não mais conseguir viver
aquela experiência. Lamento o quanto fui infeliz e perdi tempo. As situações
são apenas situações e são transitórias. Por isso, se a minha felicidade
dependia daquele segundo, ela também seria passageira. Deste modo, lutava para
viver aquilo novamente. Numa tentativa inútil de reviver o pouco que me deixava
feliz. Sem compreender que cada situação tinha em si a sua magia, e nunca mais
se repetiria.
Diante
de meu infortúnio, restava-me somente a fuga do real para algo imaginário, que
me desse um mínimo de prazer e bem-estar. Onde eu estivesse protegida das
pessoas, dos sentimentos ruins, da sensação de abandono e rejeição. Buscava um
poder o qual me fizesse esquecer o quanto eu não era amada, por mim mesma até.
Força esta encontrada nas drogas, nos diálogos nos quais eu me vitimizava, e
bem depois, em meu exílio de movimentos e expressão, vivido após o acidente. E
mais recentemente, a volta ao mundo das drogas.
Percebia
claramente em minha vida, as armas do poder para sua própria manutenção. O medo,
por não conhecer o passo seguinte, ameaçando a soberania da condição de
conquista permanente; a culpa, por não atender ao externo e, deste modo,
correr o risco de não ser aceita por ele; a manipulação para chegar aos
meus objetivos, fazendo do mundo meu aliado, sem que este se dê conta, o que
facilitará a conquista; a mentira, por negar a verdade em mim e
preservar uma imagem para uma aceitação do mundo; a auto-imagem, para
seduzir o mundo e nutrir sua conservação a qualquer custo; o controle,
para garantir a situação desejada por mim, sem me preocupar com o outro, embora
usando de discursos altruístas; a compulsão, transformando-me em
obsessiva dependente, na esperança de preencher exacerbadamente meu vazio
existencial. Armas estas, transformadas por mim, inconscientemente, em
princípios de vida. Ironicamente, sem saber, princípios de negação da própria
vida.
No último ano, voltei a um mundo
macabro. Talvez o convite para um retorno, a uma viagem por mim mesma e meus
maiores segredos, aqueles os quais passei a vida tentando fugir. Um retorno a
minha alma.
Percebi o quanto estive distante de
minha essência, por quase toda a minha vida. Que o poder havia me proporcionado
esta distância, ao me deixar escravizar por ele. Jaz nesta percepção a minha
maior e melhor obra!
E me vi, no final de 2011, após a
tristeza que se abatera em nossa família, adentrando os portões da Fazenda da
Esperança, em Guaratinguetá, no Estado de São Paulo, entidade mundial que
trabalha com a recuperação de dependentes químicos.
Tancredo conhecia bem as fundadoras,
mantendo estreitos laços com uma delas, por ter sido ele um recuperando, há
muitos anos, na fazenda masculina.
- Tenho ainda muito medo de mim. O que
me fez me perder, ainda está muito presente. Eu sinto. – Confessei a ele.
- A consciência é a sua melhor
companhia. – Retrucou Tancredo imediatamente, com largo sorriso.
- E se eu não conseguir?
- Estarei aqui. Distante de você aprendi
que não preciso temer perdê-la, que esse medo em si já me distanciava de você.
Agora quero viver isso verdadeiramente.
- Até quando?
- Até quando nosso coração quiser.
Ele sorria, feliz, paciente. Como se já
comemorasse a minha vitória.
- Sabe que não será fácil.
- Sim, eu sei. Esta vai ser uma
conquista sua, dia após dia.
- Vou sentir sua falta.
- Eu também, muito! Vou contar cada segundo.
- Tancredo, quero que tome cuidado.
- Com o quê?
- Comigo. Eu estou ainda muito machucada
por dentro. Sua amizade foi a coisa mais importante que me aconteceu nos
últimos tempos. Não quero que sofra.
- Estou bem, Celina. – Ostentava grande
sorriso, iluminado.
- Eu não estou preparada, você entende?
Era claro o amor daquele homem para
comigo. E eu não poderia retribuir. Não naquele momento.
- Sim, entendo. – Alargava ainda mais o
sorriso. – Como te disse, estarei aqui, o tempo que for preciso.
Referia-se Tancredo não mais à minha
recuperação, mas à nossa relação. Ainda assim, uma alegria me tomou. Eu estava
protegida.
Dei as costas, voltando-me para aquele
novo cenário.
- Celina? – Chamou-me ainda mais uma vez.
E quando eu me voltei a ele:
- Bem vinda a um dos maiores presentes
da existência. O retorno à nossa alma!
Ele me iluminava com aquele sorriso,
enchendo-me de esperanças. Era a força e a crença de quem havia também
retornado.
E de longe o vi socar o ar, num gesto de
vitória. Depois, entrar no carro e partir, até quando pudéssemos nos reencontrar
novamente, num outro momento de minha vida.
E já em meu quarto, abri a mala, tirando
de dentro o presente de Pedro Lucena. Miguel, Rafael e Gabriel, juntos, em
unidade, fariam parte daquele momento, na mezinha ao lado de minha cama.
Acompanhar-me-iam silenciosamente em minha jornada de volta para casa.
Mas agora, numa nova perspectiva.
A casa dos anjos
estaria no retorno, não mais seria a saída!
Orei diante dos anjos.
Depois, abri meu note book e acessei o
arquivo de meu novo romance.
A Casa dos Anjos.
Celina Gondim
Fortaleza, 11 de fevereiro de 2012, 00h05.
E NA PRÓXIMA SEMANA
A Casa dos Anjos - Continuação: A História de Marina Pessoa.
Boa semana e uma ótima leitura!!!